Não tenho o hábito de lembrar e conversar sobre situações da minha infância, porém tenho uma inquietação, em particular, desde criança que continuo recordando como se fosse recente.
Certo dia me veio uma dúvida quando alguém me explicou que as próprias pessoas escolhiam a sua profissão, talvez por ser o meu primeiro contato com a ideia de livre arbítrio num contexto relevante. A indagação foi o que aconteceria se ninguém escolhesse uma determinada profissão. Era como uma preocupação que a sociedade poderia se desequilibrar se ninguém mais quisesse ser médico, por exemplo.
Acho que nunca fiz essa pergunta, especificamente, pra alguém até que conclui que as infinitas combinações de bilhões de pessoas, espaços geográficos e tempo tornariam esse risco praticamente nulo.
Duas décadas mais tarde, depois de alguns anos de profissão, surgiu uma inquietação diferente sobre aquele mesmo livre arbítrio. Isso foi quando pude perceber (e aceitar) que eu não tinha escolhido meu trabalho, exatamente, com liberdade, mas sim por normas educativas e crenças impostas pelo meu meio social. Foi como se sentir enganado e num dia distante despertar de uma realidade artificial, na qual eu exercia uma função que não se conectava com os meus valores, e entender que a minha criatividade tinha sido limitada a ponto de não permitirem que eu conhecesse quem sou Eu antes de decidir uma profissão para a vida.
Foi só então que eu entendi que muito além daquele livre arbítrio e das infinitas combinações, existe uma inexplicável sinergia maior quando estimulamos cada um a conhecer seus dons, identificar seu propósito e assim se dedicar a um papel na sociedade que o realize e faça apenas o bem para todos.
Como o economista britânico Ernst Schumacher – que cunhou o termo Buddhist Economics depois de uma experiência em Mianmar – conta que, do ponto de vista budista, a função do trabalho é: “Gerar bens e serviços necessários para uma existência decente.” ao passo que comumente no mundo de hoje, na verdade, ”O trabalho é para sacrificar seu próprio lazer e conforto, e os salários são uma espécie de compensação pelo sacrifício.” (em traduções livres).
O economista chileno Manfred Max-Neef desenvolveu o conceito de Desenvolvimento à Escala Humana que contribui para o entendimento desses “necessários” do budismo ao explicar que: “As necessidades humanas fundamentais são finitas, poucas e classificáveis”… “são as mesmas em todas as culturas e em todos os períodos históricos. O que muda, através do tempo e das culturas, é a maneira ou os meios utilizados para a satisfação das necessidades.” (em traduções livres).
Também sob a visão desses “necessários”, o psicólogo americano Marshall Rosenberg, criador da Comunicação Não Violenta, elucida a grande diferença que existe entre a necessidade humana fundamental e o desejo, que é uma estratégia para satisfazer a necessidade, e como não atendê-la gera diálogos violentos. Isso porque é complicado medir a importância e as consequências desse desejo. Como, por exemplo, para satisfazer a necessidade de autoestima, a estratégia pode ser ler um livro para aprender algo novo ou focar em acumular mais bens que os outros pra se sentir melhor. O que seria mais correto?
Numa breve reflexão, provocada por aquela minha inquietação em conjunto com esses três pensadores, se fundamenta uma perspectiva mais clara de como a responsabilidade do trabalho tem correlação direta com as necessidades humanas, mas acredito que, essa consciência se tornou incoerente no desenvolvimento moderno.
Uma simples prova dessa incoerência na realidade atual foi muito bem exposta pelo ativista indiano Satish Kumar : “Nós desenvolvemos tecnologias para chegar à lua, mas não a sabedoria para conviver com os nossos vizinhos.” (em tradução livre).
Essa distorção de foco do desenvolvimento, que deveria almejar evoluir a civilização, fica evidente quando concordamos que uma das causas pode ser quando o comodismo daqueles que têm suas necessidades humanas essenciais atendidas dá espaço para seus próprios desejos fúteis, ao invés de reconhecer essa inconsciência e priorizar o direito as necessidades básicas dos outros ao redor, até que todos as tenham atendidas.
Acredito que não preciso relembrar porque trago esse “desfoque” à pauta, já que se você teve acesso a esse texto seguramente sabe que existe uma desigualdade crescente e gritante no mundo, onde há poucos com todo tipo de desejo satisfeitos e muitos com todo tipo de necessidade essencial insatisfeitas.
Essa inconsistência já foi inclusive comprovada pelo psicólogo americano Leon Festinger em sua Teoria da Dissonância Cognitiva sessenta anos atrás, na qual conseguiu demonstrar que a forma como os indivíduos se atêm a crenças, convicções e opiniões pode gerar comportamentos contraditórios muitas vezes. Esse conflito interno pode permanecer, ou, quando percebido, demandar ajustes nas percepções, mas requer uma ação para tanto. Isso evidencia como o conforto do que acreditamos ser correto nos desconecta da realidade e pode explicar porque permitimos tamanha desigualdade acontecer sob nossos olhos, falar que nos importamos com os outros e, ao mesmo tempo, não fazer absolutamente nada para diminuir as diferenças, por exemplo.
Essa transformação de mentalidade não é tão difícil assim e é possível, mas precisamos de novos formatos de educação e engajamento. Dar apenas informação não é suficiente, as pessoas precisam se sentir envolvidas e eficazes para fazer uma mudança. Essa é uma das conclusões de um relatório sobre economia comportamental da New Economics Foundation.
Dentro de toda esta argumentação sobre o trabalho e a necessidade, acredito que um grande poder transformador está em como nos estimulamos, desde criança, a assimilar a realidade que vivemos e compreender que um trabalho só é responsável quando seu resultado supre necessidades humanas fundamentais ainda não atendidas por alguém.
Uma dúvida pode ser identificar o que é essencial, mas além de estudos profundos como o de Max-Neef e de Rosenberg, outra forma valiosa de entendimento é voltarmos a nossa sabedoria anciã, que vem de um momento da civilização que ainda estávamos imunes à “Frenesi de ganância e entrega a uma orgia de inveja.” (em tradução livre), como afirma Schumacher.
Ainda hoje, em tribos no Xingu que conseguiram manter as tradições, por exemplo, não há importância pros bens materiais, nem diferenças de domínio entre os membros e não existe uma divisão entre trabalho e lazer, como o cientista social brasileiro Roberto Gambini relata. É como se o respeito à coletividade fosse natural e espontâneo. Incrível como saber dessa informação me transmite uma sensação positiva de esperança.
Nós, como cidadãos, geramos bens e serviços e os consumimos, assim um simples ajuste de foco é viável quando passamos a questionar se realmente acreditamos na necessidade do que o nosso trabalho cria e se o que consumimos é necessário para uma existência decente.
Isso requer uma mudança complexa no senso comum, mas temos que respirar fundo, aceitar e enfrentar. Se continuarmos inconscientes chegaremos a um ponto que não tem mais volta e aí, o que vamos necessitar?
Felipe Brescancini
Referências:
SCHUMACHER, E.F. Buddhist Economics. In: WINT, G. (Ed.). Asia: A Handbook. Londres: Anthony Blond, 1966.
MAX-NEEF, M. A. (1994). Desarrollo a Escala Humana: Conceptos, Aplicaciones y Reflexiones. 2ª edição. Barcelona: Nordan e Icaria, 1998.
ROSENBERG, M. (2003). Comunicação Não Violenta: Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. Tradução de Mário Vilela. São Paulo: Ágora, 2006.
KUMAR, S. (2007). Spiritual Compass: The Three Qualities of Life. Reino Unido: UIT Cambridge.
FESTINGER, L. A Theory of Cognitive Dissonance. Stanford: University of California Press, Califórnia, 1957.
NEW ECONOMICS FOUNDATION (2005). Behavioural economics: seven principles for policy-makers.
SCHUMACHER, E.F. (1973). O Negócio é Ser Pequeno: Um Estudo de Economia que leva em conta as pessoas. Tradução de Octávio Alves Filho. 4ª edição. Brasil: Zahar, 1983.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZPon2i7Ya18
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