Difícil escrever um texto de final de ano sem que ele caia naqueles clichês conhecidos que sugerem dicas pra mudar de vida, realizar os sonhos, comprar presentes mais baratos ou simplesmente pra fazer o bendito balanço do ano que passou.
Por todos esses motivos, eu confesso desde aqui que não vou tentar inovar.
Vou tentar escutar, silenciar. Vou tentar aprender com as minhas próprias palavras, que ultimamente andam relutando pra não se distanciarem dos meus atos. Isso porque as palavras tem um poder imensurável. Pra quem as propaga e pra quem as recebe. Uma responsabilidade absoluta sobre a mensagem que se pretende passar pro mundo e de que forma o mundo faz uso dela.
Neste ano encerrei um ciclo transformador, sem imaginar que a parte mais difícil seria manter consolidadas as lições que me ofereceram longe de casa.
Meninos do orfanato Mission of Hope, Kampala – Uganda.
No primeiro dia de 2015 eu estava em Kampala, capital da Uganda, visitando um orfanato que acolhe meninos que viviam na rua. Ofereci o que estava ao meu alcance e saí de lá consciente de que esse meu “alcance” é infinitamente menor do que eu gostaria que fosse.
Dali em diante, no Quênia conheci a mais forte ativista contra o abuso, a violência e o estigma que recai sobre mulheres viúvas e divorciadas. Ela superou a morte do marido, ter a casa incendiada e ser acometida de um câncer e me ensinou o poder da ação, da resiliência e da firmeza de propósito. Ainda hoje me inspira e me relembra que o problema é do tamanho que você o enxerga e as pessoas te enxergam do tamanho que você se coloca.
No Irã me senti livre, mesmo sendo obrigada a manter os cabelos sob o hijab, no Líbano conheci mulçumanos e católicos crescendo juntos e acolhendo uns aos outros e na Jordânia fui convidada pra um café na casa de uma família de mulheres em Jabal El-Hussein, um campo de refugiados.
Aula noturna para as crianças em Tilônia – Índia
Na Índia, retirei-me em silêncio absoluto por dez dias. Talvez um preparo para em seguida conhecer crianças que depois de um longo dia de trabalho, aprendem a tabuada sob a luz de velas.
Cruzei com mulheres traficadas e exploradas na capital da Tailândia e embarguei a voz ao ver tantas delas com o olhar fundo e distante. Passei por lindas paisagens e templos no Camboja, mas foi no Laos que recebi a benção de um noviço budista de 19 anos.
Encerrei o jejum do Ramadã ao lado de uma família muçulmana na Indonésia e saí da Coreia do Norte com mais dúvidas do que cheguei. Na China, compreendi que a minha busca por preços baixos subsidia e incentiva o trabalho desumano em fábricas espalhadas por todo o país.
Fe e Thoungxai em Luang Prabang – Laos.
Até que voltei ao Brasil e encontrei um país fragilizado, de princípios ruindo e pessoas assustadas. Eu me assustei.
Me assustei com a hostilidade nas relações, com a brutalidade do não diálogo e a soberba dos pensadores virtuais. Me assustei com a minha gente se agredindo, sem sequer se dar conta de que a violência praticada pode correr o mundo, mas invariavelmente volta pra você, camarada.
Me assustei com pessoas amadas adoecendo sem que eu pudesse fazer muito. Me assustei com corações apertados de mágoa, saudades e incompreensões.
Me assustei com quem renega a história do Brasil, do nosso nobre sangre negro e da nossa mistura sacralizada no resto mundo. Me assustei com quem acha que feminismo é recalque e insiste que bandido bom é bandido morto. Quase colapsei com a lama que tomou conta de Minas Gerais e com as propostas de redução da maioridade penal, do estatuto da família, da lei que pretende retirar da mulher sua autonomia sobre o próprio corpo e de outros tantos projetos e posicionamentos que retrocedem nossa sociedade ao período em que as baratas eram o top de racionalidade.
Mas ai surgiram as mulheres unindo forças e marchando de peito aberto por mais equidade, coerência e justiça. Marcharam com tanta verdade, que agora o caminho é sem volta e não há mais espaço para novas ideias e atitudes opressoras, que agora estão sendo todas desmontadas, pra desespero de quem acha que o nosso lugar não passa do tanque.
Vieram também os estudantes que deram uma verdadeira aula de mobilização social pacífica e fundamentada. Nos mostraram o poder do coletivo e da integridade. Nos fizeram enxergar claramente que a revolução se faz pela nobreza dos princípios que a norteiam e quando isso acontece, não há violência repressora que possa miná-la.
Nesse burburinho, ainda cruzei o caminho com quem busca respostas, revê paradigmas, questiona padrões e acredita no ser, não no ter. Gente disposta a se desconstruir, pra reconstruir o mundo.
Gente que se enxerga como um ser social, completamente a serviço do outro em cada ato, cada palavra. Eu sou, porque você é e não há outra forma de a vida acontecer.
Gente ciente de que pensamentos bons desembocam em palavras fortes, que por consequência transformam-se em atos de fé. Gente que acredita que o amor a si mesmo e a sua própria história revela a beleza genuína de ser exatamente quem você é. Gente comprometida com a verdade e convicta de que desejar e praticar o bem são a fórmula perfeita pra cura de qualquer mal.
Gente que descobre novas formas de economia, novas alternativas de consumo e novas possibilidades de trabalho. Gente que, assim como eu, sente que algo diferente vem acontecendo, mas ainda fica tímido pra celebrar. E se “essa gente” a que alguns se referem torcendo o nariz forem esses com quem eu cruzei, tomara que eu seja parte deles.
Gente de fé e humilde o suficiente pra perceber que estamos todos aqui pra servir. Seja lá quem for. Nossa história é nosso legado, pois então, que ela seja inspiradora.
Vendo tudo isso, meu coração acalmou e me senti aconchegada no abraço de quem enxerga um mundo novo possível. Agora escuto, silencio e aprendo com o que eu vivi, desejando ser capaz de transformar tudo isso em ação, antes que eu me assuste de novo.
Enfim, não tenho nada de diferente pra dizer neste momento. Viver a compaixão, a empatia, o propósito e o amor genuíno que essa época nos remete é possível de ser feito todo dia, mas gente assustada não consegue.
Por isso, aos assustados fica o meu testemunho: há vida liberta após o medo. Ele ainda me circunda, mas quando ameaça me enlaçar, eu o relembro de que sou eu quem faz as escolhas aqui.
O meu desejo de natal? Que você o relembre do mesmo.
Gabi Think Twice Brasil
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