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Experiência #12 - Lukupa, Kasama, Zâmbia



Desde que comecei a me engajar em projetos e ações sociais, minha opinião sobre vários assuntos foi amadurecendo e, em alguns casos, se transformando. Percebi que isso acontecia porque eu estava mais aberta a enxergar questões que antes eu não conseguia ver com clareza da janelinha do meu quarto.


Uma delas é viver na prática a minha teoria e, a partir dai, tirar novas percepções e concluir que sempre temos muito a aprender. Como advogada, não adiantaria saber de cabeça a nossa constituição, se não fosse capaz de traduzi-la para o meu cliente. O mesmo acontece nessa nova fase. Não adianta resolver que quero trabalhar para reduzir a pobreza, sem antes ouvir o que têm a dizer aqueles que efetivamente sofrem com ela. Enfim, não posso decidir batalhar pela igualdade de gênero sem saber o que na realidade ainda a impede de ser absolutamente inquestionável.


Falei tudo isso pra contar sobre a minha participação na experiência mais inusitada e engraçada até agora. Mas só pra mim, porque o Fe não pôde participar! No último post falamos sobre a Claire, a amiga que fizemos na Zâmbia e a responsável por nos apresentar inspirações incríveis, incluindo ela mesma e a sua organização – Kasama Micro Grants.


Foi graças a ela que recebi o convite para participar do ritual de iniciação sexual de uma jovem de dezesseis anos, que está de casamento marcado com o amiguinho da escola. Isso é bastante comum por aqui, como já contei em outros posts. Mas dessa vez a escolha foi dos noivos, que mesmo sendo muito jovens, parecem estar bastante apaixonados. Menos mal.


A cerimônia se chama Cisungu e é exclusiva para as mulheres da vila, mas como a presença de gente nova – ainda mais branquela e faladora como eu – costuma despertar muita curiosidade, acabei sendo gentilmente convidada para me juntar a elas. Foi parecido com um chá de cozinha, mas daqueles que as suas amigas te zoam tanto, que fazem você repensar sua decisão de se casar – e também as suas amizades.


Sem sombra de dúvidas, foi a festa mais diferente e impactante em que eu já estive presente. Até supera as festas de final de ano da firma, que todo mundo solta a franga como se não houvesse amanhã…


Por volta das 16 horas chegamos à casa dos pais da noiva. As mulheres já estavam no quintal, acomodadas no chão em volta da vovó, a matriarca da família e a única sentada em uma cadeira, como símbolo do respeito e admiração que sentem por ela. Elas se revezavam entre tocar os tambores e beber cerveja local, enquanto a noiva esperava, dentro de casa, pelo momento certo de se juntar a nós. As crianças aproveitavam a farra para dançar. Sempre remexendo os quadris, tipo quadradinho de oito (juro).



Um fato curioso é que sempre que alguém entra na roda pra dançar, não importa aonde, tem que amarrar uma canga na cintura, pois o tecido realça os quadris e ajuda a calcular o nível de requebrado da pessoa.


Voltando ao que importa, a cerimônia é conduzida por uma professora especial para o tema e que parece ter uma posição de destaque entre as mulheres. Quando ela e todas as convidadas estavam a postos, caminhamos até uma sala fechada, onde os homens não pudessem nos ver, e a noiva entrou engatinhando, coberta por um pano. Os tambores foram à loucura nessa hora e eu estava felizona. Mal sabia eu o que me aguardava…


Passada a euforia, fomos todas até o meio do mato, pois é onde acreditam que nos conectamos melhor com a natureza e os instintos femininos ficam aflorados, o que é fundamental para os exercícios que viriam a seguir. A noiva teve que tirar toda a roupa e ficar apenas de calcinha e, obviamente, ela não parecia muito confortável.



A professora começou explicando que antes de cada exercício era preciso rolar na terra, como uma demonstração de respeito ao conhecimento das mulheres mais velhas. Logo ela partiu para demonstrar a primeira tarefa, que foi a seguinte: Em um prato cheio de amendoins, a noiva deveria encontrar uma semente diferente e resgatá-la com a boca. Tipo aquela história de mandar a amiga encontrar a aliança no meio da farinha. Depois de capturada a semente, a noiva deveria cavar um buraquinho na terra e plantá-la. Tudo isso com a boca, sem utilizar as mãos.


Então, depois das instruções, a noiva rolou na terra – só de calcinha – resgatou a semente e plantou-a com a boca. As mulheres gritavam, riam e comemoravam como se estivessem no show da sua banda favorita e me assustou um pouco não saber quais seriam os exercícios do nível avançado do curso. Em seguida foi a vez da Claire, que concluiu a tarefa e também provocou a euforia da plateia.


Eis que chegou a minha vez. Até aquela hora eu achei que poderia apenas assistir, mas a minha efetiva participação nos exercícios parecia ser um motivo a mais de diversão pras colegas Além disso, por se tratar de um ritual tradicional e, até certo ponto sigiloso, a minha presença somente seria admitida sob a justificativa de que eu também seria iniciada.


Lá fui eu, rolar na terra de um lado pro outro, caçar a sementinha no meio dos amendoins e plantá-la na terra com a boca. A boa notícia é que pude continuar vestida



E esse foi só o primeiro exercício. Dentre os outros, eu tive que plantar bananeira pra pegar um cordãozinho amarrado em um galho usando o meu dedão do pé e participar das rodas de dança. Quando chegou a noite teve também uma caminhada até o rio, pelo meio do mato, apenas com a luz da lua…explosão de emoções pra quem tem pânico de cobra. Claire me salvou de ficar de calcinha e entrar no rio para alguns outros exercícios



Nessa hora, a noiva ganhou uma maquiagem e um penteado de lama. Ela foi enrolada em um tapete de palha e voltamos pelo mesmo caminho cantando algumas músicas. Eu cantei naquele meu estilo de sempre quando não sei a letra e deixo a imaginação rolar solta.


Chegando de volta à casa eu estava exausta. Foi quando Claire e eu tivemos que deitar no chão, cobertas por um lençol, enquanto as mulheres tocavam os tambores, cantando e dançando em volta da gente. Um cestinho foi colocado no centro da roda para que as convidadas contribuíssem com doações em dinheiro. Minha bochecha estava atolada na terra e eu fiquei deitada naquela posição de conchinha solitária, sabe? Tipo abraçando os joelhinhos Mas como era noite de lua cheia e eu acredito muito nesse lance de vibrações e tal, acho que recebi bastante energia naquela hora!


Enquanto isso, a noiva continuava enrolada no tapete e eu abraçando o joelhinho e seria assim até que o cesto estivesse com uma boa quantia de dinheiro. Nessa hora me deu até vontade de oferecer a minha câmera fotográfica como forma de pagamento (a propósito, a câmera estava enrolada no pescoço e dentro da blusa pra não riscar a lente. E eu deitadinha na terra, claro). Quando finalmente o cesto ficou cheio, Claire e eu pudemos nos levantar e eu fui parabenizada pelas mulheres com vários daqueles tapinhas carinhosos que deixam sangue pisado no braço, sabe?


Mas depois de tudo isso, quando eu tava quase pedindo pra minha mãe me buscar, eu lembrei que a noiva ainda esperava dentro do tapete. Então, ela finalmente foi libertada com um belo balde de água fria para limpar a lama da cabeça e do rosto. Moral da história: nunca reclame, porque sempre pode ser pior.



Dentre as lições mais importantes, a professora nos ensinava alguns movimentos sexuais que dariam mais prazer aos maridos e também sobre como deveríamos guiar o nosso corpo no momento do parto. Além de algumas dicas para o dia a dia, como por exemplo, não soltar punzinhos perto do marido (verdade! Tinha até uma música sobre isso). Achei esses conceitos super valiosos, principalmente para lembrarmos que o nosso corpo foi feito para operar da maneira mais natural possível (guardadas as exceções, é claro).


Por volta das 22 horas, o jantar foi servido. Algumas bacias com nshima, feijão, peixe frito e vegetais foram colocadas no chão. Nos sentamos todas em círculo e comemos juntas com as mãos, que é o costume local. Deu medinho lembrar que não lavei as mãos direito e minhas amiguinhas também não. Mas comi e tô viva! Isso é o que importa.


Depois disso, Claire conseguiu convencer as mulheres de que já estava muito tarde e precisávamos voltar pra casa. Isso porque o ritual costuma durar três dias seguidos e as mulheres podem dormir pouquinhas horas durante esse período. Nós nos despedimos e caminhamos, pelo mato e no escuro, até a fazenda de Claire e Justin. Fe já estava dormindo na barraca e eu não fazia ideia de que horas eram. Obviamente ele teve que acordar pra ouvir TU-DI-NHO sobre as minhas aventuras. Ah, a cereja do bolo: mesmo depois de fazer diversos croquetes na terra, eu dormi sem banho Já estava tarde (quase meia noite) e muito escuro para chegar até o rio. Um grande abraço pro inventor dos lencinhos umedecidos para bebês!


Demorei pra pegar no sono. Era muita informação nova na cabeça, terra na orelha e o som dos tambores que durou até de manhã… Afinal, era só o primeiro dia de festa.


Levei tempo pra digerir toda aquela experiência. E foi curioso pensar que os exercícios pareciam, ao mesmo tempo, empoderar e oprimir aquelas mulheres. Porque não ensinam lições que tragam prazer também às esposas? E ainda assim, tive a sensação que elas pareciam sair de lá mais poderosas, depois de aprender – ou relembrar – como somos capazes de comandar lindamente o nosso corpo.



Por alguns dias vivi um dilema, sem saber identificar exatamente o que eu havia experimentado naquele dia. E algumas semanas depois, consegui desenhar as minhas primeiras impressões sobre tudo isso.


A primeira delas é que muitas vezes construímos nossas percepções baseadas na opinião dos outros, no senso comum ou em algo que lemos/escutamos algum dia. Por isso, temos que estar SEMPRE abertos para mudar a nossa interpretação. Digo isso, porque aposto que até agora você pode ter achado todo o ritual que eu descrevi acima bastante estranho e um tanto machista. Eu também achava, até participar – literalmente – e concluir que o princípio é quase que o mesmo do nosso famoso “chá de cozinha” – ou sua versão moderna “chá de lingerie” – mas MUITO mais rico em tradição e cultura local. Lá não se investe grandes quantias de dinheiro em cupcakes. É uma simples troca de risadas e conhecimentos entre as mulheres.


Nós contratamos professoras para nos ensinarem a fazer strip tease, massagem e pompoarismo, ou simplesmente esperamos ganhar colheres de pau e lixinho de cozinha. Poxa!!! Isso também é suuuper machista e a ainda assim a gente se diverte! E passada a emoção inicial, eu até gostei de aprender o que eu devo fazer na hora do parto… Nunca ninguém me falou sobre isso e parece ser mais útil do que aprender a usar uma vela de massagem com gosto de chocolate hehehe.


Claro que essa mesma interpretação não se aplica às iniciações sexuais que, em algumas regiões, são impostas a meninas a partir dos nove anos de idade, obrigando-as a deixarem a escola para frequentar o “novo curso”. Depois de concluído, elas se tornam aptas ao casamento, quase sempre com homens mais velhos. Nesse caso, o casamento é justificado como um atalho para beneficiar financeiramente a família da pequena noiva ou até mesmo uma forma de “livrá-la” dos estigmas colocados pela sociedade às mulheres que não se casam.


Então a primeira conclusão é que no fundo a gente é bem parecido mesmo, respeitar o diferente e abrir espaço para reconsiderar nossas percepções é uma forma de enxergar essas similaridades.


Outra coisa que me fez pensar bastante é que mesmo nos queixando dos clichês que são impostos às mulheres, muitas das vezes somos nós mesmas quem colocamos nossas amigas em cheque. Sempre tem a querida que parece insistir em perguntar o porquê de você não estar namorando, não ser casada, não ter filhos ou ainda o porquê de ter se separado, trocado de emprego ou simplesmente ter seguido por um caminho diferente do dela.


Não sei o fundamento disso, mas sei que acontece bastante e tende a ser mais comum entre as mulheres do que entre os homens. E essa reflexão me surgiu porque durante a cerimônia eu pude notar que algumas mulheres pareciam mais empolgadas que as outras, faziam uma certa questão de nos intimidar na hora dos exercícios e se divertiam horrores nos vendo em posições bizarras. O mais engraçado é que um dia elas já estiveram no nosso lugar e provavelmente se sentiram intimidadas também. Isso não seria o suficiente para desejarem que as próximas gerações não precisassem enfrentar os mesmos desafios que elas?


Pois é… e vocês não precisam ir até a Zâmbia para encontrar pessoas assim.


Acho que a gente às vezes esquece de olhar pra nós mesmas e no quão valiosas são nossas experiências e aprendizados, mesmo que tenham sido dolorosos, e acabam focando mais em replicar perguntas, padrões e comportamentos que não agregam nada e ainda trazem energia negativa. Claro que mudar culturas e tradições é um caminho muito mais demorado e que precisa de uma força tarefa, mas pra quem vive na cidade grande e é bombardeado de informações diariamente, replicar padrões é uma mera comodidade. Não é sempre que precisamos escolher entre casar ou comprar uma bicicleta. Nós podemos ter os dois. Ou nenhum deles.


Se todas nós tivéssemos consciência do poder da nossa mente, do nosso corpo e das nossas palavras, acho que não ficaríamos tão preocupadas em nos adequarmos ao que, supostamente, parece ser o caminho normal. Seríamos todas livres para criar os nossos padrões, sem ter que replicar o que todo mundo usa. E o melhor, não teria ninguém querendo ouvir de você respostas que você não tem que dar.


Enfim, nós somos todas bem parecidas – no Brasil, no Zimbábue ou na Zâmbia – e temos muito a aprender umas com as outras. Basta deixar de lado esse costume de sempre reparar no que está faltando (o namorado, o marido, o filho, o casamento…) e passar a ver beleza em nós mesmas. Sem precisar seguir nenhum checklist, muito menos o daquela amiga que sempre te pergunta se você ta namorando, enquanto você tá mais ocupada planejando suas próximas férias pra Bahia.


Gabi.

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