Esse país já tem um lugar especial no nosso coração por ser o primeiro natal e ano novo longe da família e de casa. Gosto muito dos sentimentos de união, amor e família que pairam nos ares durante essa época do ano, apesar de discordar da proporção consumista inconsciente que essa festividade tomou – sem perdoar alfinetadas… – Para não deixar de lado os costumes da sociedade, me dei um chinelo exuberante por dois dólares…
Além da complexidade que tivemos ao chegar à casa de Kampala, como contei na reflexão anterior, nossa caminhada para encontrar o transporte local foi divertida com os branquelos empacotados andando pelo centro perguntando pra todo mundo como chegar onde. Quando encontramos a lotação ficamos aliviados. Ao sentar com a mala de vinte quilos no colo (pois não há bagageiro) nos deparamos com um trânsito de ficar totalmente parados por uma hora.
O mais incrível desses sessenta minutos é que fiquei lembrando que há um ano no trânsito maravilhoso de São Paulo, sozinho, no meu carro espaçoso, com ar condicionado, minha música favorita e respondendo mensagens no celular eu estava puto por me sentir um idiota ali parado e perdendo tempo de vida útil… E ali, na desconhecida Uganda, no centro, de noite, apertado, desconfortável, com um Jhonas falando aos gritos no celular, sem saber a hora de descer da van, preocupado com a Gabi e com a importância das nossas malas, eu estava tranquilo e em paz.
Bom, se descobrir porque, me liga por gentileza…
Acabamos nos hospedando mais afastados da cidade para descansar e tivemos o privilégio de um lugar calmo. Gratidão!
Na nossa busca por organizações, nossa leitora Elisa Martins, fez uma grande gentileza de indicar o projeto TORUWU, o nome não é uma palavra da língua local como o gênio aqui presumiu que era… vem de Training of Rural Women in Uganda (tradução: treinando mulheres da zona rural de Uganda). Gratidão Elisa!
Entramos em contato com um dos fundadores, o senhor Augustine Yiaga que prontamente se colocou a disposição para buscar-nos na cidade, super gentil. O projeto está no vilarejo de Kikajjo, próximo a Kampala. Depois de trabalhar com um indiano muito generoso por anos, ele decidiu abrir mão de tudo para simplesmente ajudar a comunidade a se desenvolver. Ele acredita piamente no poder do trabalho comunitário visando em conjunto pelo bem coletivo. O que na contramão, bem sabemos que, infelizmente, o mundo deixou de ser essa “comunidade” faz tempo…
Ele investiu todos os seus recursos juntamente com a Sophie Bemba para iniciarem o TORUWU. Ela, enfermeira de formação, se inspirou profundamente pelo trabalho generoso da sua mãe em ajudar pessoas sofrendo sem cobrar nada. Assim não resistiu em se entregar a fazer o bem. Ambos me impressionaram pela consciência do que precisam fazer e como.
O projeto educa e empodera mulheres, em sua maioria viúvas, com aulas de costura, artesanato, cultivo cogumelos, produção de vinhos e sabão. Tudo na busca por ensinar um meio de trabalho para gerar renda e desenvolver autonomia para as mulheres liderarem as suas próprias vidas. Surpreendeu-me a forma como explicam a missão: equipar habilidades de sobrevivência econômica para tornar-se independente. Esse é um princípio essencial para o trabalho da TORUWU. Incrível! Além disso, também dão aulas de computação e música para as crianças, quase sempre órfãos.
Um detalhe que admiro infinitamente em organizações como essa, é que encontraram a sua independência financeira. No caso deles, através da produção e venda de vinho. Para crescer e mudar a vida de mais comunidades, eles ainda dependem de contribuições já que o foco deles, obviamente, é ajudar mais pessoas e não tornar o negócio de vinho altamente lucrativo. Essa é uma linha tênue quando se pensa em crescer sem perder o foco na missão. Mas eles demonstraram claras prioridades.
Outro detalhe inspirador é a escola que criaram para órfãos e crianças sem condições de pagar. Mesmo com o desafio do salário dos professores, que não são voluntários, eles não deixaram de zelar pela importância fundamental do conteúdo de ensino. Isso porque se tratando de um grupo de crianças com idades bastante diferentes, eles poderiam ter escolhido o caminho mais fácil e barato ao dividi-las em apenas duas classes. Ao invés disso, eles assumiram a responsabilidade de manter o ensino por série e separaram a criançada em sete turmas diferentes, de acordo com a idade. Cada uma com o seu professor e, em média, onze alunos por classe. Também há um cozinheiro para todos.
O que é diferente do que vimos em diversos países, onde escolas têm turmas de sessenta alunos de idades variadas juntos. De forma alguma as estou criticando, elas já fazem um milagre, porém encontrar maneiras para superar desafios como esse é ainda mais admirável. Essa preocupação nos provou ser um compromisso com o futuro da comunidade através das crianças. Agente de transformação é pouco para eles!
Se não bastasse tanta sabedoria, eles nos transmitiram pura humildade ao pedir a nossa opinião sobre a organização, o que temos conhecido e como poderíamos ajudar. Tivemos uma longa conversa sobre cases que conhecemos como referência para eles, assim como sobre a importância de promover continuamente o trabalho deles para que mais pessoas conheçam. Além da ajuda financeira, que sempre contribui claro, eles valorizam pessoas dispostas a passarem uns dias ou meses na comunidade liderando um novo projeto. Mais uma prova de quão bem elaborado é o escopo de trabalho da TORUWU.
Obrigado queridos Augustine e Sophie, lhes desejamos realizações gigantes! O site deles conta mais do projeto e como você pode entrar em contato para contribuir: www.toruwu.org
Perambulando pela cidade sem cansar, como sempre fazemos, o gentil Joseph Kiwanuka nos abordou numa grande avenida perguntando quão europeus éramos… O alegramos quando dissemos nossa procedência latina. Nunca desconfiam que somos brasileiros, infelizmente… Ao contarmos do Think Twice Brasil, ainda em movimento, ele prontamente se empolgou e nos falou brevemente sobre a sua história, nos emocionando de volta. Ele é órfão e já foi menino de rua. Quando conseguiu deixar as ruas através da arte se juntou com amigos, com histórias parecidas, para cuidar de meninos que ainda estavam nas ruas.
Assim criaram o orfanato Mission of Hope Uganda (tradução: missão de esperança Uganda).
Esses cinco minutos foram intensos e um presente mútuo naquele momento. Trocamos contatos e combinamos de conhecer a molecada no primeiro dia do ano, pra começar com muito amor. Assim o fizemos e fomos com o Joseph e o Simon Mukasa, também fundador.
O orfanato começou em outubro de 2013 e ainda não tem uma estrutura, pois ainda precisam captar recursos para tanto. Os meninos não vão à escola porque não há dinheiro para pagar a mensalidade, mas enquanto isso fazem atividades como acrobacia, aprendem música e participam da igreja. Uma regra importante é não trabalhar nas ruas, porque isso gera um ciclo negativo e os tiraria do orfanato.
Mesmo com certa experiência em ver as realidades daqui nos últimos meses, tivemos um grande impacto ao entrar na “casa” deles. É apenas um quarto alugado numa zona desfavorecida da cidade, tem doze metros quadrados. É bem úmido e não estava exatamente limpo. Vimos cobertores no chão que servem de cama, mochilas velhas nas paredes, poucas roupas jogadas, pequenas panelas, pratos e comida em saquinhos no canto. Ali vivem quinze meninos órfãos.
Fomos muitíssimo bem recebidos com um número acrobático deles, que me cansou só de ver a força e capacidade que têm de se empilhar. Nunca tinha visto de perto e o treinamento realmente leva a perfeição, independentemente das condições. Sério.
Depois de conhecer onde vivem e mais sobre o projeto, cada um dos sete meninos, que estavam lá naquele momento, nos contaram um pouco sobre as suas histórias e seus sonhos. A emoção era incontrolável porque sentíamos uma energia intensa no tom triste de cada palavra que diziam. Foi uma chacoalhada e tanto de realidades que não conhecemos e, talvez por negação ou esperança, preferimos dizer ao cérebro para pensar que é tudo mentira.
Cada movimento do universo tem um sentido e aquele momento, no 1º dia de um novo ano, significou muito pra mim.
Bom, o dilema ai é pensar o que podemos fazer para melhorar um pouquinho de tudo que ainda é necessário para que tenham uma vida mais digna. Não resistimos em começar pela alimentação, claro, e fomos ao mercado mais próximo comprar todo o dinheiro que tínhamos no bolso em comida. A alegria quando voltamos já pagou todo o dinheiro do mundo, pelos abraços e sorrisos. Apenas.
Em todas as nossas conversas perguntamos o que mais eles sentem falta hoje. Além da escola, claro, mencionaram coisas que a Gabi e eu nunca tivemos que pedir na vida, como colchão, roupas, tênis, cadernos, pratos e comida. Impossível ali não pensar na quantidade de coisas que têm no meu quarto guardado ainda hoje e que ali naquele quarto sem quase nada moram quinze crianças e aquilo é tudo o que têm. Difícil não se sentir egoísta e fraco por querer acumular tanto para nada…
O que todos eles pediam ao final de cada conversa individual era algo que hoje parece realmente escasso no planeta: Amor. Não estou dramatizando, eles disseram que precisam de mais “love”.
Saímos de lá para pensar o que de tudo que nos disseram poderíamos levar no dia seguinte, para mudar um pedaço da vida deles a partir daquele dia. Naquela noite, nós numa cama espaçosa num quarto confortável, eu não conseguia parar de pensar que naquele exato segundo aqueles quinze meninos estavam amontoados naquele pequeno espaço de terra tentando dormir.
Talvez impactado pelo sono, decidimos então comprar colchões para aquele chão, pratos para aquela comida e livros, lápis e jogos para aqueles garotos aprenderem se divertindo, enquanto não vão à escola. Conversei com a minha família nesse dia e, talvez sentindo a nossa emoção, meus pais quiseram “patrocinar” o ato. Gratidão! Foi uma aventura pelo centro para encontrar tudo e levar até eles, mas conseguimos.
A entrega foi um momento único, queríamos estar lá para dar mais que aqueles bens materiais, mas para transmitir que era uma forma de amor, o que podíamos entregar aquele dia, que éramos uma gota no oceano, mas que esperávamos deixá-los com esperança e perseverança.
Ao nos receberem, percebemos que aquela energia e palmas deles era bem mais que um “obrigado por ajudar”. Era mais profundo que uma gratidão pelo amor, por saber que alguém se importa com eles. Era quase como se estivéssemos tapando um pedacinho daquele buraco no coração deles formado pelo amor de pai e mãe que eles nunca sentiram. Dá pra sentir um pouquinho no vídeo.
Foi forte. Nós, que tivemos o privilégio de ter o amor verdadeiro dos pais nunca saberemos o que é. Gratidão! Mas podemos sempre, todos os dias, doar amor para qualquer um de graça, sem compromisso, amor não tem preço, amor não exige retorno, amor é generoso e não tem medida de grandeza, o amor cura qualquer problema e o respeito é seu melhor amigo.
Um ensinamento que aprendi no budismo e que peço todos os dias para ainda conseguir praticá-lo genuinamente é simplesmente amar a todos, como amamos a nossa mãe. É possível! Pai, também te amo!
Felipe.
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