Quando começamos a traçar o roteiro inicial do projeto, a Etiópia era um dos países tidos como prioridade. Isso porque, pelas notícias que chegam a nós, esse país é quase como um símbolo da pobreza e das piores dificuldades que a África enfrenta.
Além disso, a Etiópia é considerada o berço da humanidade. A Lucy, um esqueleto de mais de três milhões de anos, foi encontrada em 1974 em uma cidade no norte do país e é considerada a mais velha evidência da espécie humana no planeta.
Diferentemente de todos os lugares por onde passamos, lá não houve processo de colonização. Os italianos até tentaram, mas o pouco legado que deixaram se resume a prédios antigos e pizzarias. Isso é um motivo de orgulho para os etíopes, que enchem o peito para dizer que a sua cultura é única e muito especial. Eu quase levei uma voadora quando comentei com o cara do hotel que eu achava a língua deles – o amárico – bem parecida com o árabe. A verdade é que é realmente parecida, mas preferi encerrar a discussão antes de ser deportada.
Mas mesmo com todas essas exclusividades e diferenças, a Etiópia não ganhou meu coração e, curiosamente, foi a primeira vez que isso aconteceu nesses quase seis meses.
Pelas ruas de Adis Abeba, a capital, encontramos dezenas de pessoas pedindo esmola. Era impossível caminhar mais de cem metros sem que alguém se aproximasse para nos pedir algo. Nada muito longe daquilo que já estamos acostumados, mas ali foi diferente.
As crianças perambulavam pelas ruas com roupas sujas e rasgadas esticando a mãozinha para receber algo, enquanto as mães aguardavam sentadas em algum lugar próximo. Nós temos um acordo de nunca oferecer dinheiro, porque acreditamos ser a maneira mais fácil de contribuir para um futuro vazio, sem perspectiva de mudança. Ao invés disso, passamos a comprar umas comidinhas extras e distribuir para quem estivesse pelo caminho, embora nunca fosse suficiente.
Quando não tínhamos mais o que dar, eu oferecia um abraço ou um carinho no cabelo. Esses gestos sempre foram bem recebidos, mas com aquela cara de “valeu tia, agora o dinheiro”.
Foi lá onde eu também me senti um pouco paranoica, com a sensação de que estávamos sendo seguidos o tempo todo. Quase sempre, por coincidência ou não, eu estava certa. Ao longo das caminhadas, sempre aparecia alguém querendo fazer amizade e no final da conversa aproveitava a chance pra pedir um dinheiro, uma passagem de ônibus, um carro e uma casa própria.
Mas em meio a todos os meus receios e questionamentos, com a ajuda da ActionAid Etiópia conhecemos um projeto incrível chamado Women In Self Employment – WISE que me lembrou a importância de enxergar além das aparências. Fomos muito bem recebidos e tivemos uma roda de conversa com três mulheres beneficiadas pelo projeto. Lá elas aprendem conceitos de economia doméstica e empreendedorismo. Sabendo poupar e investir, elas iniciam ciclos virtuosos que incluem a criação, produção e venda de artesanatos.
Se não bastasse, elas ainda participam de competições que instigam ideias inovadoras e as mais criativas recebem um investimento significativo em dinheiro para desenvolverem seus negócios. Elas nos deram depoimentos emocionados contando sobre como a vida muda depois que tomamos consciência de que somos responsáveis pelo nosso destino.
Essas mulheres amoleceram o meu coração e me mostraram que no meio da hostilidade, ainda é possível encontrar um punhado de virtudes espalhado por ai.
Tenho a impressão de que todas essas características são próprias de uma grande cidade com milhões pessoas. Isso porque viajamos para o leste do país até Harar, a quarta cidade mais sagrada do Islamismo, e tivemos experiências bem diferentes. Começando pelo hotel que não tinha água, nem pia no banheiro e à noite servia de refúgio pra hienas. Tudo tão luxuoso que eu preferi não tomar banho e não olhar na janela.
Caminhando pela cidade recebemos muito mais sorrisos e menos tentativas de venda. Mas as pessoas pedindo ainda estavam lá. Era engraçado porque em algumas situações crianças super bem vestidas se aproximavam correndo e pronunciavam um sonoro “Money”. Foi quando eu passei a perguntar a elas o porquê de precisarem desse dinheiro. A conversa sempre acaba em sorriso, ou porque eles não entenderam a pergunta ou não sabiam a resposta.
Em algumas situações eu ia adiante, como por exemplo, com dois meninos de uns oito anos que encontramos saindo da escola, uniforme limpo, sapato engraxado, mochila nas costas e tomando um sorvetinho. Bastou trocarmos olhares pra surgir a palavrinha mágica “money”. Ai eu não aguentei… a minha vontade era parar e dizer “queridos, sentem aqui que a tia vai explicar uma coisinha pra vocês”, mas lembrei de um antigo lema da minha primeira chefe – e grande amiga Tekinha – que prega que todo ensino e aprendizado feitos com amor, produzem efeitos mais especiais e duradouros. Então preferimos continuar caminhado ao lado deles enquanto eu dizia que ele já tinha coisas muito mais importantes do que dinheiro, como a chance de ir à escola, ter uma boa roupa e tomar um sorvete gostoso.
Eles ouviram atentamente o meu discurso e na hora de ir embora ainda fizeram uma última tentativa esticando a palma da mão, o que eu entendi, carinhosamente, como um aperto de mão hahaha e assim o fiz.
Continuamos nossa caminhada e chegamos a uma reserva natural, onde não há nada além de natureza, pedras e poucas famílias. Foi quando fomos surpreendidos por cinco crianças que surgiram dos arbustos correndo e gritando em nossa direção. Eu já estava quase me rendendo, quando uma delas se pendurou no pescoço do Fe e outra no meu. Todos pediam abraços e acabou rolando quase que um montinho… todo mundo se abraçando e eu recebendo muitos beijos, o que não é um gesto muito normal pra quase ninguém na África. Esse momento deve ter durado uns dois minutos e quando eles se cansaram de tanto carinho e apertões, pegaram novamente os baldes e continuaram o caminho até o poço para buscar água. Assim eles foram embora sem pedir nada e nos deixando com uma sensação deliciosa de amor genuíno e puro, coisa que só as crianças conseguem nos fazer sentir com facilidade.
Esses dois momentos combinados com as demais situações que já tínhamos vivido, me trouxe uma reflexão curiosa, na linha daquela questão filosófica sobre quem surgiu primeiro – o ovo ou a galinha?
Nos comportamos como os nossos líderes ou nossos líderes se comportam como a gente?
É uma boa questão, né? Quando somos crianças nossos líderes são nossos pais, nossos tios, nossos avós e qualquer outra pessoa mais velha que admiramos por algum motivo. Isso significa que se você fura fila e finge que não tinha visto aquelas 576 pessoas aguardando, se você repete opiniões sem checar se elas têm fundamento, se você é fofoqueiro, materialista ou oportunista, seu filho, neto ou sobrinho muito possivelmente vai enxergar tudo isso como um exemplo. E mais, se você instiga uma criança a agir com preconceito, discriminação, intolerância e individualismo ela vai crescer com isso e lá na frente é provável que te deixe na mão.
Por outro lado, se você tem o coração grande, é generoso, grato, educado e consciente, você está no caminho pra criar um anjo do bem, daqueles que todo mundo quer por perto.
O mesmo acontece pra quem já é maiorzinho. Em um país como o Brasil e tantos outros pela África que conhecemos, eu me pergunto: Nós somos fruto dos nossos líderes ou eles são fruto da nossa postura?
Pelo amor, não venha me dizer que o Brasil está assim porque “aquela gente” votou “naquela zinha”. A resposta vai muito além disso e me faz refletir sobre como agimos no dia a dia.
Quem são nossos formadores de opinião? São aqueles que nos ensinam receitas de tapioca light, exercícios pra chegar na barriga negativa e onde encontrar o look perfeito? Pois é, vejo menos gente do que eu gostaria discutindo assuntos relevantes e se envolvendo com os problemas do mundo. Eu não estou dizendo que todo mundo só pode discutir política no happy hour, porque eu acho bem chato quem não consegue encontrar o equilíbrio. O que eu quero dizer é que quanto mais distantes estivermos de construir nossas próprias opiniões e ter claro o que é admissível ou não no país e no mundo, mais próximos estaremos de sermos liderados por pessoas que não se preocupam com nada além dos seus interesses pessoais. Deveria ser uma mudança coletiva e se cada um começar a tempo ainda temos chance.
O mesmo deve acontecer na Etiópia, Angola, Moçambique e outros países extremamente corruptos da África, que aprenderam a sobreviver de ajuda internacional. Enquanto o pessoal tá pedindo na rua, os seus líderes estão dando rolezinho de iate por ai. Foi assim que eles aprenderam e se está dando “resultado”, porque mudar?
Enfim, eu confesso que não tenho uma resposta pra minha pergunta, mas tenho pensado muito sobre o que estamos ensinando e o exemplo que estamos passando para as nossas crianças. Mas antes disso acontecer temos que tomar consciência de como estamos agindo. Parar de olhar a grama verde do vizinho e regar a nossa. Quando isso acontecer, me parece que poderemos voltar a sonhar com uma nova geração de líderes conscientes e uma sociedade proativa e participante.
Por tudo isso, a Etiópia não me encantou, mas me chacoalhou. Me mostrou que não há mudança se não houver boas referências para nos espelharmos e basta estar vivo pra ser um bom – ou mal – exemplo pra alguém. Pensando bem, na Etiópia e no Brasil é isso mesmo que está faltando: repensar nossos valores, se reconhecer como um exemplo pra quem convive com a gente e saber escolher quem a gente considera um exemplo.
Tapioca e look do dia não mudam o mundo, mas se acompanhar uma boa dose de ativismo social, ambiental e político, ai a gente tá no mesmo time.
Gabi.
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