Agora estamos finalmente na Ásia e começamos por um país de maioria budista, o Sri Lanka. Fiquei relembrando todos os princípios que aprendi num retiro no Nepal que me fizeram ver o budismo como a religião que mais preza pelo bem comum. Essas memórias vieram ao andar pelas ruas e ver como as pessoas sorriem mais pra você que nos outros países em que estivemos recentemente. É uma personalidade cultural, assim como senti no Nepal e na Tailândia, também de maioria budista. Pode não ser apenas em razão da religião, mas acredito ser a maior influência.
Calma que não estou menosprezando nem reclamando de maus tratos nos outros países, mas pensando em civilidade, seja em qualquer ponto do planeta, você acha mais prazeroso viver em meio a sorrisos ou a caras sérias?
O país é uma pequena ilha logo ao sul da Índia e as pessoas se parecem, fisicamente, com os vizinhos. Para os distantes brasileiros é difícil diferenciá-los, mas para eles não, claro. O país esteve num triste conflito étnico por vinte e seis anos que chegou ao fim somente em 2009, com a vitória dos militares contra os rebeldes Tâmiles. O importante é que hoje a paz reina lá e não sentimos hostilidade nenhuma, pelo contrário, muito amor.
Um dos ensinamentos do budismo que mais gosto é a questão da pura motivação. Se sua ação, seja ela qual for, esteja movida por um motivo do bem você só atrairá energias boas. Isso vale muito para refletir por um segundo a beira de uma decisão. O que vale inclusive para a mentira. Como por exemplo, falar para um ladrão que você não tem dinheiro enquanto ele tenta te roubar, parece um pouco justo, não?
Ai também entra aquele instinto humano do certo ou errado. Parece sobrenatural e, salvo exceções, na grande maioria das vezes o certo é obviamente claro, mas as poluições mentais interferem a decisão, como o egoísmo, a pressa, a vergonha, a ganância, etc.
Muitos dos valores que são elementares como respeito e honestidade não conversam com a sociedade de hoje por muitos motivos, mas o principal deles é o medo. Medo de ficar sem dinheiro, de não ter onde morar, de passar fome e perder os amigos. Esses medos, por mais compreensíveis que sejam, dominam as nossas decisões e confundem as nossas prioridades de escolha entre todos os demais valores.
Dentre muitos, para mim um princípio fundamental é saber dar valor, apreciar e agradecer o que somos e ao que temos acesso. Isso na verdade é o tema deste texto. Comecei a escrevê-lo sentado num ônibus a caminho do interior do Sri Lanka, onde mesmo sentado esmagado entre dois seres (um era a Gabi, ufa), melado por aquele calor que ferve a alma sem ar condicionado, estou em paz e agradecido.
Fiquei pensando se realmente não fiquei louco de vez, mas acho que consigo me explicar.
Primeiro, que apesar das dificuldades estou aqui porque quero e decidi de livre e espontânea vontade. Quanto mais pudermos nos colocar na pele do outro mais podemos aprender e assim acredito piamente nessa motivação pura. Outra relatividade importante é que nessa mesma situação descrita, há umas vinte pessoas em pé. Então imagine aquele ônibus circular lotado de São Paulo andando por cinco horas sem parar numa serra cheia de curvas. Sério. Então estou sim agradecido por estar sentado a viagem toda.
Outra razão da minha gratidão é que não tenho ideia do motivo pelo qual essas pessoas estão viajando, para onde estão indo e para fazer o que. Mas só pelo fato de pensar que poderei chegar ao albergue, tomar um banho morno, sentar a mesa e pedir o que eu quiser comer com o ar condicionado funcionando me faz sentir imensamente grato.
Convenci?
O ponto não é que todos temos que “sofrer” para aprender isso, mas para compartilhar como situações relativamente simples podem significar muito num dia comum. Ponto concluído.
No Sri Lanka tentamos ser voluntários numa organização com um foco diferente, animais, e nada mais divertido que os delicados elefantes. Ao entrarmos em contato ficamos chocados com um detalhe, cuidar deles e ficar acomodado numa casa na floresta custaria 220 dólares por dia por casal. Não pagamos nem metade disso numa hospedagem até agora e ficamos intrigados… Como erros acontecem, tentamos esclarecer com a pessoa responsável se havia algum mal entendido, mas ele gentilmente nos explicou que era isso mesmo e que essa arrecadação imposta aos voluntários é responsável pela maior parte da sustentabilidade financeira da organização.
Fiquei conversando com a Gabi sobre essa situação uns dias para relembrar essa moderna visão de “turismo-voluntário-premium-internacional” que surgiu há alguns anos. Até pesquisamos umas opções quando começamos a planejar a viagem e claro que abortamos.
Isso não desonra a idoneidade das organizações e a missão que elas cumprem, porém o formato sem fins lucrativos e o conceito de voluntariado ficam bem perdidos, na minha opinião.
Primeiro que qualquer organização social que tenha a finalidade de realizar um trabalho que a sociedade não consegue fazer, por incapacidade do governo ou cumplicidade dos cidadãos, tem por definição que lutar contra a “desigualdade de amor”. Não necessariamente a desigualdade social nem a financeira, é mais uma desarmonia de atenção e carinho que pessoas, animais e natureza sofrem por termos nos esquecido do que realmente importa durante a evolução. Pensei bastante como explicar esse ponto sem ser mal compreendido, espero conseguir.
Dentro do ponto da igualdade, exigir que uma pessoa pague um valor altíssimo para trabalhar de graça além de contraditório é seletivo, pois significa que só aceita a mão na massa de quem tem dinheiro suficiente para pagar o valor. Lembrando que o país em questão é o Sri Lanka, onde o custo de vida é um dos mais baixos do mundo…
A parte mais inconsistente é que voluntariado, dentre várias definições, significa trabalhar espontaneamente sem obrigação nem retorno esperado, por livre arbítrio. Assim, exigir além dessa divina vontade própria, uma contribuição financeira alta me parece bastante estranho.
Tudo bem que pelo ponto de vista do aprendizado e dos momentos com elefantes pode ser justo cobrar um valor. Mas que seja justo. Até porque não deve ser um trabalho fácil e tudo tem um preço hoje. Mas para manter da forma atual pelo menos o nome deveria ser justo, como “turismo de luxo com experiências animais”. A ideia não é tirar sarro, inclusive falei isso para o responsável contando que nós, potenciais voluntários, não participaríamos do projeto por discordar do formato e lembrei que existem inúmeras formas de arrecadação e a criatividade humana é ilimitada.
Como prova de que isso se tornou uma oportunidade de mercado, uma das justificativas foi que eles estabeleceram um preço baixo comparado a projetos na Tailândia. Ou seja, existe até uma estratégia de preço em relação à concorrência global no setor de “turismo-voluntário-premium-internacional”. De novo, não estou duvidando da boa vontade, mas eu não concordo.
Meu último argumento é que se isso é uma forma de buscar fundear valores de voluntários abastados dispostos a doar mais, ok, até pode ser um meio inteligente para redistribuir renda. Porém, temo que isso vire um posicionamento de preço e marca que os leve aos vícios maléficos do capitalismo, como querer criar meios de convencer pessoas que aquele serviço é o melhor. O famoso marketing… No episódio em questão não houve flexibilidade nenhuma no preço, nem mesmo contando sobre o Think Twice Brasil e nosso intuito de divulgá-los. Ainda mais porque estávamos dispostos a ir no dia seguinte, quando a probabilidade de outro voluntário pagador aparecer era zero.
Ficamos constrangidos e desapontados depois de anos aprendendo sobre voluntariado e meses vivendo intensamente esse meio de vida.
É uma pena, mas a visão de economia de mercado livre e o oportunismo estão contaminando até as organizações do bem, então precisamos sim respirar e tomar cuidado com nós mesmos e com o que aparece na nossa cabeça sem nem notarmos.
Amei reviver o budismo e conhecer uma nova cultura, agora em paz. Fiquei tentando calcular em quanto tempo essa mesma paz pode valer pra todos os países. Ai lembrei que enquanto não largarmos o orgulho, a honra e a ignorância intencional, não vai rolar… Vamos tentando e que venha a divina consciência antes que acabe o tempo de reconstruir. Vai que dá!
Felipe.
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