Estamos de volta ao lugar mágico que despertou tantas mudanças em mim…
Chegamos à Índia!
Agora chego acompanhada do meu grande amor e melhor amigo, exatamente como eu havia pedido à Ganesh da primeira vez. Não é a toa que ele é o meu deus preferido.
Fomos direto para Auroville, uma cidade que fica no sudeste do país e é descrita por seus idealizadores como sendo uma cidade universal, “que não pertence a ninguém em particular, mas à humanidade como um todo”.
Auroville surgiu do sonho de uma francesa nascida em 1878, a Sra. Mirra Alfassa, a quem hoje os aurovillians chamam de The Mother. Ela iniciou sua busca espiritual ainda criança e o propósito de criar um espaço propício para a evolução da consciência humana se intensificou quando foi apresentada a Sri Aurobindo, o mestre indiano responsável por guiá-la e auxiliá-la na criação da ideologia da cidade.
Auroville foi fundada em 1968 com o intuito de servir como uma alternativa àqueles que buscam um novo estilo de vida, onde pessoas de todos os países convivem em paz e harmonia, independentemente dos seus credos, convicções políticas e nacionalidade. A fundadora escreveu o manifesto da cidade, denominado “A Dream” (um sonho) e quem tiver curiosidade coloquei o link no final do post.
Hoje são pouco mais de duas mil pessoas do mundo todo vivendo lá e sustentando um ideal de preservação e conexão com a natureza e com a nossa força interior.
Auroville parece nos apresentar um pouco do que poderá ser o nosso futuro se todos conseguirmos despertar a tempo de construir uma nova consciência individual e coletiva. Quase ninguém usa carro, todos parecem ter tempo para dedicar-se a si mesmos, os preços são justos e há uma enorme preocupação com a conservação do meio ambiente, uso da água, cultivo de alimentos orgânicos e reciclagem de lixo.
Grande parte da mão de obra da cidade é exercida pelos indianos que vivem nos vilarejos ao redor, que trabalham nas mais variadas posições.
Os comerciantes e prestadores de serviço devem contribuir com 33% do lucro líquido. Esse percentual costuma variar em alguns casos, já que muitos optam por contribuir muito além desse valor, enquanto outros, que ainda estão iniciando seus negócios, podem receber descontos no valor até que se estabeleçam financeiramente. Isso é um bom exemplo de como utilizar o bom senso, ao invés de se ater exclusivamente à aplicação de normas.
Outro fato curioso é que lá ninguém é dono de nada. Todas as terras, os prédios e construções pertencem à Auroville. Não há prefeito e as decisões são tomadas em assembleia, na qual se espera que haja consenso entre os participantes. Quando isso não é possível, o voto da maioria é suficiente. Pelo que conversamos, esse sistema de administração tende a ser bastante complicado e muitas vezes retarda o processo de desenvolvimento, já que somos todos seres humanos e obviamente não é tão simples assim concordar com o coleguinha todo o tempo. Uma das pessoas com quem conversamos classificou Auroville como uma anarquia espiritual.
A educação é pensada e transmitida de forma diferente e existem inúmeras escolas para residentes de Auroville e dos vilarejos próximos. Passamos uma tarde conhecendo uma das escolas, a New Creation, e aprendendo coisas incríveis com seu fundador, o Sr. André Tardeil, que chegou à cidade em 1973. Crianças a partir dos cinco anos são estimuladas a desenvolver a criatividade e a consciência, ao passo que vão despertando individualmente seus interesses e afinidades. Não há provas, nem avaliações e assim as crianças e jovens se desenvolvem verdadeiramente. Para André, a figura do professor não serve para ensinar e sim para guiar o aprendizado, que deve florescer de dentro da criança.
De acordo com ele, a partir dos sete anos é quando as crianças iniciam o processo de concentração e poderão mostrar-se mais aptas a absorver informações e conhecimentos mais profundos. Ambientes agressivos e violentos que fomentam a competição deixam marcas significativas, assim como o aprendizado pautado em decorebas e absorção superficial das informações.
André também insiste na importância de desenvolver a consciência espiritual, individual e coletiva da criança. O ser humano pode ser comparado a uma flor de lótus, que nasce pequena e tímida em meio ao lodo escuro. Com o passar do tempo ela se desenvolve, cresce e finalmente floresce lindamente. Se não investirmos nosso tempo em desenvolver nossa consciência, nosso poder interno, nossos talentos e dons naturais, corremos o risco de estar sempre mais perto do lodo, do que da flor.
Mas a grande parte das pessoas que conhecemos por lá JÁ são flor e aproveitam esse privilégio para se colocarem a serviço da sociedade, implementando ideias inovadoras e inspiradoras, como o caso do Eco Femme, um dos projetos mais fantásticos e completos que conhecemos até hoje.
Pelo mundo todo e principalmente em algumas regiões da Índia, a menstruação não é um assunto discutido entre as meninas, o que gera muitas dúvidas, segredos e falsas interpretações sobre o tema. Quando entram na puberdade as meninas são pegas de surpresa pela primeira menstruação e não recebem nenhum apoio quanto a isso, pelo contrário, passam a ser discriminadas em determinadas situações e impedidas de frequentar lugares e celebrações durante o período.
Também por falta de informação, dinheiro e vergonha do próprio corpo, utilizam absorventes feitos de retalhos de pano e a verdade é que essa é a realidade de mais de 74% das mulheres que vivem na zona rural da Índia (fonte: Eco Femme). Foi pensando nisso que um grupo de mulheres fundou a Eco Femme, um negócio social cujo principal objetivo é permitir que as mulheres vivam a menstruação com mais dignidade.
O Eco Femme não só leva conhecimento aos vilarejos e desmistifica o período menstrual, mas também dá às mulheres a oportunidade de trabalharem fabricando absorventes feitos de algodão que são distribuídos em várias vilas e vendidos a preços justos. O absorvente de tecido é higiênico, antialérgico e reutilizável por até cinco anos. O custo de cada um começa em cerca de três dólares americanos e não passa de seis.
Isso significa economizar dinheiro e evitar o descarte de lixo.
Os produtos são fabricados em diferentes tamanhos para que se adequem ao fluxo e ao corpo de todas as mulheres. Podem ser lavados e secados na máquina, mas pra quem não tem não há problema algum em lavá-los à mão e colocá-los para secar no varal. Pensando nisso e para evitar constrangimentos com os vizinhos e até mesmo maridos, um dos modelos é feito em forma retangular, que pode ser aberto e colocado para secar sem chamar a atenção de quem passa.
Pra se ter uma ideia do impacto social e ambiental desse produto, vou falar em números: Um absorvente descartável é equivalente a quatro sacolas de plástico. Uma mulher utiliza em média entre 125 a 150 quilos de absorventes durante a vida e cada um deles leva cerca de 800 anos para se decompor sozinho. Essas estatísticas também se aplicam ao copo coletor, que já é utilizado com mais frequência por milhões de mulheres ao redor do mundo. O copinho funciona como um tampão, mas o material é reutilizável e dura até dez anos. O Eco Femme também incentiva o uso do copo coletor e trabalha em parceria com algumas das empresas sociais que os fabricam.
Consegue imaginar o benefício dessa invenção para as mulheres e para o mundo?
Se não bastasse, as mulheres dos vilarejos próximos a Auroville, que antes se encabulavam e se assustavam com o assunto, agora são as peças chave da produção dos absorventes e também as encarregadas de conscientizar a comunidade sobre o tema. Um exemplo fantástico de como implementar ideias inovadoras a favor da inclusão social.
Na mesma linha segue o trabalho da Life Education Centre, que oferece cursos de inglês, costura e workshops em temas variados para as mulheres da região. Essa é uma maneira poderosa de empoderá-las e levar a elas o conhecimento necessário para que possam se colocar contra abusos, violências e qualquer outra forma de discriminação e preconceito a que possam estar sujeitas em casa ou no trabalho.
Fomos recebidos com muito amor pela Devi Nama Sivayam, que nos explicou com paciência e detalhes o propósito do projeto e a realidade de Auroville. Ela também reforçou a nossa crença de que gente informada não aceita qualquer coisa e tem força pra resistir mesmo quando todo mundo se entrega. Esse é o poder da consciência.
Para materializar essa bela caminhada rumo ao despertar da consciência, o ponto central de Auroville, considerado a alma da cidade, é uma construção hipnotizante – o Matrimandrir – idealizada para aqueles que buscam aprender a concentrar-se e encontrar sua própria consciência. No centro do globo está a câmara principal, almofadas milimetricamente alinhadas, uma enorme bola de cristal no centro e uma pequena abertura no teto, que permite passar um pequeno feixe de luz do sol. Em volta do globo, ficam as chamadas pétalas, que são pequenas salas de meditação específicas para as virtudes que se pretende concentrar.
Para visitar o Matrimandrir é preciso agendar um horário e assistir alguns vídeos transmitidos em um pequeno auditório reservado para isso. A instrução é de que deve prevalecer o silêncio absoluto e não há espaço para a prática de nenhum ritual religioso. É você, sua consciência e sua força interior, só.
Nossa primeira visita foi mágica e me remeteu àqueles filmes futuristas, em que eu me vi entrando em uma câmara toda branca e quase ensurdeci com o barulho alto do silêncio absoluto. Quem já passou por isso, pode entender que nem sempre o silêncio é silencioso… Nunca tinha experimentado essa sensação e foi incrível.
No dia seguinte voltamos lá e dessa vez pude meditar também nas pétalas. Eu escolhi humildade e perseverança e o Fe escolheu bondade e igualdade. A construção das pétalas foi baseada nas doze virtudes da mãe natureza, que se referem à nossa relação com a gente mesmo e também com o outro. Foi especial poder escolher a virtude de acordo com os significados atribuídos a cada uma delas. Nem sempre nos lembramos exatamente do sentido real e espiritual de algumas palavras e ler as descrições me fez concluir que eu preciso meditar – e melhorar – muito em todas elas.
Esses momentos em silêncio, concentrada e tentando evitar pensamentos indesejados acabaram sendo muito esclarecedores e eu sugiro que todos tentem de alguma forma. Mas dentre os poucos insights que tive durante esses minutos, um deles chamou especialmente a minha atenção. Me mostrou com clareza que o meu propósito, que hoje se resume a essa viagem de descobertas, é uma verdadeira busca pela sinergia e sincronia entre consciência espiritual e desenvolvimento social.
Digo isso por dois motivos. O primeiro é que não dá pra tentar mudar o mundo, se não mudarmos antes a nós mesmos. Isso é básico, mas quando penso que quero trabalhar com desenvolvimento social, criando oportunidades, compartilhando conhecimento e despertando talentos eu preciso estar ciente que devo me cobrar uma evolução constante. E que os meus olhos e meu coração devem estar sempre prontos para praticar a empatia e os meus ouvidos estarem mais disponíveis para ouvir do que a minha boca para falar.
O segundo motivo diz respeito à espiritualidade. De uns tempos pra cá foi criado um mercado valioso para consumistas espirituais. Gente que pratica yoga, toma detox, recebe reiki, medita, escolhe o seu guru e segue buscando respostas e algum tipo de “iluminação”. Isso é ótimo e eu faço parte dessa turma (de certa forma). Mas nunca é demais lembrar que a espiritualidade não se resume SÓ a isso. Pelo contrário, a consciência espiritual está muito mais ligada a sua maneira de encarar a vida, de despertar sua força interior e manifestá-la de forma gentil e respeitosa com o próximo. Não há verdadeiramente uma presença espiritual se você está submerso em suas meditações, rituais e descobertas pessoais e não aplica efetivamente seus aprendizados na convivência do dia a dia. Em outras palavras, não adianta fazer yoga e beijar os pés do seu guru, se você é rude com o garçom, a moça da limpeza e até com você mesmo.
Auroville deixou isso bastante claro pra mim. Pessoas reunidas por objetivos nobres, como no caso dessa cidade, devem – ou deveriam – estar cientes de que ao aceitarem fazer parte dessa nova era, se tornaram automaticamente agentes de transformação e mensageiros de virtudes imprescindíveis. Mas pelo que pudemos observar, sentir e comprovar em algumas conversas, nem sempre isso acontece por lá. Os indianos que vivem nos vilarejos próximos e que espontaneamente receberam o ideal de Auroville em sua terra são a principal força de trabalho da cidade e nos pareceu que boa parte deles ainda não está tão por dentro dessa consciência espiritual e ambiental tão amplamente defendida pelos residentes.
Alguns residentes, por sua vez, sobretudo aqueles que conduzem negócios na cidade, parecem não se preocupar em investir tempo e dinheiro em transmitir mais informação e conhecimento aos empregados, contribuindo para que eles também tenham acesso ao caminho que elucida a espiritualidade, preservação do meio ambiente e etc. Do contrário, notamos uma certa hostilidade no tratamento dos empregados e uma aparente desigualdade social, já que parece não ter havido um esforço significativo para compartilhar os ideais de Auroville com os empregados que apesar de não serem residentes, são a locomotiva da cidade.
Isso me incomodou bastante, mas ao mesmo tempo me relembrou que somos seres humanos e a nossa evolução é um caminho difícil e cheio de sutilezas que podem passar despercebidas. Algumas das pessoas inspiradoras com quem conversamos compartilham da nossa sensação e pelo que nos contaram, direcionam parte de suas forças para transformar completamente essa minoria. Auroville está construindo uma nova possibilidade de viver em sintonia com a natureza e com a humanidade, mas pra esse sonho se desenvolver sem perder as raízes, é preciso que as pessoas compreendam que a unidade não se refere somente a um indivíduo e sua relação consigo mesmo, mas também à forma como se coloca a serviço do próximo, seja ele quem for.
Mas ainda assim, Auroville é futuro. É sonho, realidade, presente e possibilidade. É um pedacinho do mundo em que enxergamos uma sociedade verdadeiramente interessada em evoluir como humanidade.
Temos uma longa caminhada pela frente, mas Auroville se mostrou uma luz no meio do túnel, que podemos seguir até o final, quando vamos poder encontrar um pote cheio de gente de ouro e de flores de lótus.
Gabi.