O desafio era passar dez dias em silêncio, sem acesso a eletrônicos e dedicada exclusivamente ao estudo dos ensinamentos budistas e da meditação. Eu aceitei, me despedi do Fe e fiz meu check in no Tushita Meditation Centre, em Dharamsala, no noroeste da Índia.
A cidade fica nos pés do Himalaia e é bastante conhecida por ser onde mora o Dalai Lama desde a ocupação do Tibete pelo governo chinês na década de cinquenta. A Índia concedeu exílio a ele e a outros milhares de tibetanos que conseguiram escapar do violento autoritarismo imposto pelos chineses. Na época, além do assassinato de milhares de tibetanos e do confisco de bens da população, as mulheres também foram compulsoriamente esterilizadas sob a aplicação da política chinesa de controle de natalidade. Isso pra não falar das centenas de monastérios incendiados e monges torturados e levados à prisão.
Ainda assim, sob a influência abençoada de Dalai Lama, que é a principal autoridade do governo tibetano no exílio, o povo segue resistindo pacificamente à ocupação chinesa e cultivando perseverantemente a esperança de um dia voltarem pra casa sem medo de retaliações. Pra eles, pra mim e pra milhares de pessoas que reconhecem o Tibete como uma nação essencialmente independente, a figura do Dalai Lama nos conforta e nos mostra que a não violência também é uma arma de combate, mas daquelas que, infelizmente, somente poucos conseguem enxergar a força.
Eu poderia falar muito mais do que aprendi sobre o Tibete, sua luta e sua cultura, mas falar sobre as premissas do budismo tibetano, por si só, já se encarrega disso. De qualquer forma, fica aqui o meu apelo para que a questão do Tibete ganhe cada vez mais atenção e que possamos nos engajar na batalha por sua autonomia e liberdade.
Foram dez dias dividindo o quarto com doze meninas sem poder conversar nadinha, Imaginam? O mesmo aconteceu com os outros quase cem alunos que vieram do mundo inteiro. Pra mim, que falo sozinha, canto no banho e chego a enjoar da minha própria voz, não imaginava que ficar em silêncio poderia ser tão especial e transformador.
O silêncio sugerido pelos monges não se resume à ausência de barulho. Vai muito além disso e nos induz a silenciar a mente e o coração. Prestar atenção nos pensamentos, na comida, na paisagem, no próprio corpo e principalmente ouvir atenciosamente os ensinamentos que nos eram transmitidos. Estar em silêncio nos faz presentes no agora e o ato de respirar profundamente nos ajuda a compreender isso. Como dizia o nosso guia de meditação, “não dá pra respirar pelo passado ou pelo futuro. A gente só consegue respirar pelo exato momento do presente.”
Esse silêncio é necessário por vários motivos, dois deles são nos permitir olhar pra dentro de nós e aprender a conviver com a gente mesmo, sem celular, mensagens, fofocas e conversa mole. Além disso, só no silêncio é possível nos tornarmos observadores da nossa própria vida e refletir sobre quem somos, o que estamos construindo, aonde queremos chegar, como temos nos cuidado e o que tem nos movido. Um exercício que eu fiz por lá e ajuda a instigar esses questionamentos foi imaginar que eu estava prestes a morrer…”e ai? Minha vida fez sentido? O que estou deixando de lembranças?” Respirei aliviada com a sensação de que consegui mudar essas respostas a tempo.
O budismo surgiu há mais de 2.500 anos, baseado nos depoimentos e reflexões do primeiro Buda, o Sidarta Gautama, que nasceu no Nepal e cresceu na Índia. Pela história, ele foi o primeiro de muitos outros Budas que floresceram desde então, já que Buda é a denominação dada àqueles que atingem a iluminação, que é um estado mental de felicidade plena e ausência completa de sofrimento, com a intenção pura e genuína de conduzir os outros seres pelo mesmo caminho. Isso significa que todo ser vivo é um potencial Buda, principalmente o ser humano que é o único entre todos que teve o privilégio de nascer podendo exercer sua consciência e raciocínio.
A filosofia budista parte do princípio de que todos os seres vivos buscam ser felizes e se afastar do sofrimento, mas ao invés de concentrarmos essa busca em respostas que vêm de dentro da gente, acabamos projetando-as no mundo exterior. É ai que está o problema.
De todas as lições que recebi, a mais básica delas me marcou significativamente pela verdade e simplicidade das palavras e interpretações. No budismo, todo e qualquer sofrimento deriva de três principais causas: ignorância, raiva e apego. Abaixo, coloco o meu entendimento dessas causas, com base em tudo o que me foi ensinado.
– A ignorância é descrita como a “sabedoria que sabe errado” ou o nosso hábito de projetar a nossa visão particular sobre algo ou alguém tomando isso como uma verdade absoluta. É ignorar a realidade e se ater única e exclusivamente aos nossos conceitos e percepções. Trazendo pra prática, a ignorância nos cega diante das infinitas possibilidades que temos para agir e reagir. Um exemplo disso dado durante a aula são os fumantes, que sabem dos malefícios absurdos do cigarro pra si mesmos, mas seguem alimentando o hábito. No Brasil a gente costuma dizer que “o pior cego é aquele que não quer enxergar” e acho que Buda concordaria com isso pra definir ignorância.
– A raiva é a mais fácil de ser descrita – e sentida – pois se trata da reação desproporcional e agressiva que tomamos diante de uma situação desagradável. Um ataque de ciúme, uma fechada no trânsito e um sermão do chefe são oportunidades perfeitas pra despertar a fera. A questão é refletir sobre de que forma a raiva consegue resolver seu problema. Quase nunca resolve e quase sempre nos faz agir descompensadamente, dando à pessoa ou à situação uma relevância muito maior do que aquela que daríamos se tivéssemos condições de responder com tranquilidade e serenidade. Não significa ser uma planta, mas sim evitar um dano a si mesmo sabendo identificar a melhor forma de responder – se for preciso.
– O apego é a causa cuja definição mais me marcou: exagerar a qualidade de algo ou alguém e atribuir a isso a fonte da felicidade. Partindo dessa definição, o apego me parece ser a causa mais notadamente praticada no mundo e o exemplo mais verdadeiro disso é o consumo desenfreado de boa parte da população. Os celulares, os sapatos, os carros do ano, as roupas de marca e as festas luxuosas são a prova disso. O valor emocional atribuído a esses bens é exagerado a ponto de acharmos que tê-los é o suficiente para nos trazer felicidade. Acontece que nós e as coisas somos impermanentes e hoje o que aparentemente nos traz alegria, amanhã pode ser facilmente esquecido ou substituído por outra vontade. Quem nunca comprou uma roupa e quando provou em casa não gostou mais? Quem nunca comprou um carro zero e trocou por outro novo depois de dois anos? O mesmo acontece com os “amores”… Quem nunca inventou qualidades para aquele potencial futuro marido/esposa?
Viu como é inevitável não praticar ou ter praticado o apego em algum momento da vida? Como disse o professor, a felicidade fruto de um ato praticado com apego é como beber água com sal: não importa quantos litros sejamos capazes de beber, a sede nunca vai passar. Viver no apego nos faz reféns de buscar a felicidade fora da gente e esperar que ela venha junto com um produto ou uma pessoa. Mas se o vestido sai de moda, o carro deixa de ser zero ou o príncipe não liga no dia seguinte, a felicidade se esvai e logo precisamos arranjar uma nova vítima pra projetar nosso contentamento.
O curioso dessas causas é que estão todas interligadas de alguma forma e o hábito de cultivar uma ou outra implica aceitar estar sujeito a todas elas, invariavelmente. Ultimamente o maior exemplo disso pra mim é o meu péssimo hábito de ler comentários a notícias na internet. Por ignorância, eu pareço esperar que todas as pessoas se posicionem com respeito, sensibilidade e de forma não violenta. Quando vejo que a realidade é diferente disso, fico tomada pela raiva (que eu sei que é raiva só pelo fato de a minha bochecha ficar vermelha e a voz embargar) e o meu apego ao ideal de que todos os seres humanos deveriam semear o amor ao invés do ódio, acaba supervalorizando opiniões ofensivas, infundadas e parciais que não merecem absolutamente nada além de serem desconsideradas. Descoberto isso, posso escolher me poupar dessas sensações. É um caminho muito difícil e que exige dedicação diária, mas é possível.
Outro conceito fundamental para o budismo é o karma, que pode ser comparado à lei da ação e reação. Pra quem acredita em reencarnação o karma pode ser mais facilmente compreendido, mas para os céticos basta aplicar a esta vida mesmo e já faz uma diferença absurda. O karma pressupõe que os bons atos praticados por nós nos tornam merecedores de retribuições positivas e vice versa. Trata-se simplesmente de colher exatamente os frutos que você plantar, sejam eles positivos ou negativos, em algum momento da sua existência. Essa é uma discussão profunda e complexa na filosofia budista, mas independentemente da sua crença religiosa, essa dinâmica me soa muito familiar e na dúvida, prefiro continuar me esforçando pra plantar o bem.
Como referência de conduta, o budismo destaca dez virtudes, que é uma espécie de dez mandamentos para uma existência positivamente relevante, que são os seguintes:
Respeitar a vida: básico, mas não custa lembrar, né? Nesse contexto são considerados todos os seres vivos e isso significa que matar mosquito também não pode. Mesmo. Conduza-o gentilmente até uma janela… É o que o Fe costuma fazer desde que eu o conheci (juro). Ser vegetariano é algo normalmente adotado pelos budistas, mas a instrução aqui é faça o maior esforço possível para respeitar a vida de todos os seres vivos, sabendo que algumas situações são inevitáveis.
Respeitar a propriedade dos outros: também é básico, mas tá fora de moda. O budismo classifica o roubo como sendo tomar algo que não lhe tenha sido oferecido livre e expressamente.
Respeitar o corpo dos outros: essa virtude considera também a prática de relações sexuais, sugerindo que o nosso corpo seja respeitado por nós mesmos e pelos outros, sem abusos, violências ou coerções. O estupro e a traição são tidos como más condutas geradoras de sofrimento.
Praticar a verdade: essa virtude vai muito além de não mentir. Aquelas exageradinhas que damos nas historias também contam.
Discurso harmonioso: essa é uma das minhas preferidas antes mesmo de eu saber que era uma virtude budista. Propagar a harmonia, a reunião e a paz entre as pessoas por meio das nossas palavras é uma virtude poderosa e pouco observada por alguns, que insistem em fazer apologia ao ódio e à segregação. Aquela cornetada em off na vizinha, no colega do trabalho ou em qualquer outra pessoa que te desagrade, entra nesse conceito também.
Discurso gentil: seja amável na hora de comunicar-se. Isso quebra barreiras e abre espaço para sermos bem compreendidos e atendidos.
Discurso relevante: essa é perfeita pra quem participa de 26 grupos de mensagens no celular. Não há possibilidade de sustentar um discurso relevante se estamos expostos 100% do tempo à necessidade de expressar nossa opinião sobre os mais diversos temas, que variam entre a alta do dólar ao casamento da Preta Gil. Não precisamos falar sobre tudo o tempo todo e seria mais produtivo se pudéssemos destinar nossos pensamentos e palavras a questões que vão além da fofoca, opiniões vazias e críticas amargas. O silêncio nos ajuda a refletir sobre o que pode ser mais significativo pra se discutir ou, pelo menos, nos convencer que gastamos mais tempo do que imaginamos alimentando esses hábitos.
Contentamento: é a sensação de que temos exatamente o que precisamos e estamos exatamente aonde deveríamos estar. É como aquela deitada no sofá da sala depois de um dia de trabalho. Para os budistas o contentamento é o oposto da inveja, pois quando se está plenamente contente com o que se é e se tem, não há motivos para desejar o que é do outro.
Sentir amor e compaixão: o amor verdadeiro é aquele que deseja, pura e simplesmente, que o outro seja feliz, sem exagerar qualidades e encontrar justificativas. Dalai Lama costuma dizer que podemos amar uma pessoa, mas não precisamos gostar dela. Uma maneira singela de dizer que podemos desejar que todos sejam felizes, mesmo aqueles com quem não temos muitas afinidades. Já a compaixão é o desejo ativo de livrar a si e os outros dos sofrimentos e praticar a empatia é uma ferramenta imprescindível para tentar mensurar o sofrimento do outro.
Responsabilidade pelo karma: é a virtude que nos lembra sobre o peso das nossas escolhas. Somos responsáveis pelos nossos pensamentos, palavras, atos e consequentemente por tudo aquilo produzido por eles, seja bom ou ruim.
Conhecer as causas do nosso sofrimento e as virtudes que podem nos conduzir a uma vida mais ética são as premissas de muitas outras lições do budismo, que nos ensina que somos os mestres da nossa própria mente e do nosso futuro, que depende apenas da força dos atos que praticamos no presente. A meditação é a ferramenta chave pra isso e, de maneira simplista, pode ser considerada o hábito de desenvolver a consciência interior, se autoconhecer, observar e interpretar.
Um dia antes do retiro, tivemos a chance de ouvir pessoalmente uma aula da Jetsunma Tenzin Palmo, a primeira ocidental a ser ordenada monja, e aprender mais sobre o que é dedicar-se verdadeiramente a cuidar de nós mesmos. No documentário “A natureza da mente” ela disse que estamos sempre preocupados em morar em um bom lugar, estar bem vestidos, com o corpo saudável e bem apresentáveis, mas quase nunca temos tempo para cuidar da nossa verdadeira casa, que é a nossa mente. Desde o nascimento somos expostos a diferentes informações, memórias e padrões, mas ao invés de “esvaziarmos” o que ocupa espaço, vamos acrescentando mais coisas. A meditação nos ajuda com isso. Quem é você? O que tem feito com a sua vida? Como você se definiria? Se você morresse agora, você estaria contente com o que pôde construir?
Essas perguntas, assim como a prática das virtudes podem ser feitas por qualquer pessoa de qualquer religião. O budismo não é seguir os ensinamentos de Buda, mas sim tê-lo como um guia de práticas virtuosas para que possamos nos tornar um Buda também, um ser iluminado que se afasta do sofrimento e ajuda os outros a fazerem o mesmo. É simplesmente uma filosofia que nos relembra que somos os mestres de nós mesmos.
Enfim, foram dias especiais e renovadores, mas recebi tanta informação que fica difícil até pra colocar no papel o que mais me marcou. Eu queria ter muita sabedoria e sensibilidade pra conseguir transcrever exatamente as emoções que eu vivi e convencer você de que dar atenção e ouvidos a si mesmo pode ser revelador.
Nessa linha, perguntei ao guia de meditação como eu poderia ajudar as pessoas a despertarem suas consciências e revelarem o que têm de melhor em si. A resposta deles foi simples: você pode indicar o caminho, mas não pode fazer isso por elas.
Essa resposta acalmou meu coração e me trouxe clareza para compreender o porquê de às vezes me sentir uma sonhadora que fala, age e escreve sobre coisas que nem eu consigo explicar direito. Mas eu continuo falando, agindo e escrevendo mesmo assim, pois essa é a forma que tenho de compartilhar o que ilumina a minha vida e pode iluminar a sua também.
Por isso, depois desses dias comigo mesma e com tantas novas lições, descobri que não há nada tão valioso quanto ser gentil com a nossa mente, nossos pensamentos e nosso coração. Isso nos faz ser gentis com o mundo e perceber que as respostas que buscamos estão mais próximas do que imaginamos, só estamos procurando no lugar errado.
Ofereça amor, pratique a compaixão e deseje evoluir. No final do dia, antes de dormir, agradeça a você mesmo por ter a chance de escolher ser uma pessoa melhor e ao resto do mundo por te ajudar com as lições necessárias.
Quem quiser mais informações sobre o Tushita Meditation Centre clique aqui.
Para ler o relato da experiência do Fe no Vipassana clique aqui.
Gabi.
Comments