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Experiência #28 - Tilonia, Índia



Nosso mês na Índia foi intenso por muitos motivos. Além da minha grande expectativa de conhecer, conseguimos passar por cidades com culturas bem diferentes. A primeira foi Auroville, que está no estado de Tamil Nadu no sudeste. Depois foi Dharamsala, no noroeste, onde fizemos nossos retiros. Essa é uma região com influência do budismo tibetano pela grande migração ocorrida após a descabida dominação do Tibete pelos chineses em 1950. Também estivemos duas vezes em Deli onde, na verdade, passamos o dia e deu pra sentir o calor humano da metrópole. Em seguida fomos à Tilonia, um vilarejo no estado do Rajastão, onde aprendemos muito com a organização que é pauta desse texto. Ainda teve Jaipur e Udaipur onde conhecemos muitos palácios e um pouco dos contrastes indianos.


Começo por particularidades que falam por si só a respeito do modo de viver deles. A buzina é tão usada quanto o acelerador, inclusive os caminhões têm escrito na traseira “buzine por favor”. É sério, é a forma correta para pedir passagem… Assim são realmente condicionados a achar normal ter um som estridente ininterrupto como parte do cotidiano, mas qualquer estrangeiro provindo de um país “não-buzinante” é premiado com sustos constantes ao andar pelas ruas. Divertido pelo menos… Ainda no contexto do trânsito, as vacas são parte integrante dele até no meio da estrada. Elas são respeitadas lá e quase ninguém come sua carne, apesar de não serem bem cuidadas, no meu ponto de vista, já que as vi desnutridas comendo restos de lixo inúmeras vezes.



Na busca por conhecer organizações do bem, dentre as várias que já sabíamos e outras que nos indicaram na preparação da viagem, o Barefoot College era imperdível. Sinceramente não lembro como, nem quando fiquei sabendo dele, mas desde então tinha uma excelente impressão do seu trabalho.


Ele foi fundado em 1972 por pessoas no vilarejo com a liderança de Sanjit “Bunker” Roy para lutar contra a pobreza e desigualdade com o compromisso de cuidar dos pobres, negligenciados e marginalizados da sociedade. Não pelo puro assistencialismo de dar, mas por desenvolver o talento de cada um. Muito mais do que uma organização, eles conseguiram se desenvolver com um princípio de comunidade que só vi ali, redefinindo o conceito de profissionalismo para que todos sejam capazes de saber e demonstrar suas habilidades para prestar um serviço à comunidade por meio de um trabalho digno. Isso se dá por diversos motivos e, na minha opinião, o principal deles é que a inclusão social foi levada ao pé da letra com sucesso em prol de uma igualdade entre todos seus cidadãos membros.


Para explicar isso melhor é importante contar que existe uma séria segregação social na Índia por meio do seu sistema de castas. Nesse, a classe de status mais discriminada é chamada de Dalit, na qual as pessoas são vistas como “intocáveis” por fazer trabalhos considerados “impuros”. Um exemplo são atividades que envolvam lixo e sangue, como lixeiro e açougueiro. Essa discriminação já foi tão ignorante a ponto de proibir a entrada de Dalits nos templos e obrigar as crianças a comerem em pratos separados na escola… O tempo está amenizando essa diferenciação absurda, mas a verdade é que ela ainda existe, pelo o que ouvimos e sentimos.

O desenvolvimento comunitário do Barefoot foi capaz de abstrair esse preconceito e promover o aprendizado entre todos, independentemente de casta e condições financeiras. Outra inclusão que me impressionou foi a de pessoas que tiveram problemas de atrofia muscular e paralisia na infância em razão da poliomielite. Até a grande campanha de vacinação nos anos 90, isso foi um sério problema na Índia.



Um amigo que fizemos lá, o Ramniwas, é um mobilizador comunitário que nos ensinou bastante sobre a comunidade e contou sobre a sua vida. Sendo um Dalit ele lembra bem da diferença no tratamento social que seu pai recebia, depois ele mesmo em sua juventude e hoje o de suas filhas. Felizmente com certo pesar e alívio por elas não serem discriminadas, nem maltratadas.


Durante a tarde que estivemos juntos, ele nos contou com uma alegria espontânea um aprendizado sobre igualdade e respeito. Uma vez lhe perguntaram, ainda jovem, quem seria o chefe da família quando seu pai partisse e numa reação de virilidade ele respondeu que seria ele, claro, o filho mais velho. No mesmo instante ele se deu conta que só a sua mãe seria capaz de tomar conta da família, da casa e assumir todas essas responsabilidades. Foi assim que ele percebeu quão enraizada a desigualdade de gênero está na sociedade e levou daquele momento uma sabedoria pra a vida toda, reconhecendo o seu papel e o valor do próximo, especialmente da mulher. Foi muito inspirador ouvi-lo em seu tom de confissão do bem.



Ele faz parte de um trabalho de conscientização incrível, criado há 28 anos. Por meio do teatro de marionetes eles conseguem abordar e educar a população a respeito de temas delicados que são raramente discutidos, como violência sexual. Mostrando situações do dia-a-dia com humor eles encontraram a forma perfeita para conscientizar povoados que têm pouco acesso à informação e à atenção de serviços públicos. Esses eventos itinerantes chamam a atenção por onde passam e acontecem cerca de 150 vezes por ano em várias cidades do Rajastão.

A educação é um forte pilar que vai além do ensino tradicional. Trocando aprendizados com um convívio intenso, ali mesmo se formaram dentistas e patologistas em meses, por exemplo. Pessoas que eram analfabetas depois de adultas e foram capazes de aprender. A Gabi até fez um breve consulta com a doutora e foi tratada com muito carinho. Isso sim é empoderar.



Outra ideia inspiradora dali é o parlamento infantil, onde crianças se organizam para exigir os seus direitos e aprendem desde cedo sobre o poder de estar ciente da responsabilidade de cada um e como viver em sociedade faz bem para todos. Funciona tão sério que caso um acordo com um adulto não for cumprido, seu salário de membro é destinado ao fundo da criança. Dá pra imaginar o tanto de autoconfiança que isso constrói e ensina.


Um princípio de igualdade muito interessante é que todas as pessoas que são membros do Barefoot e têm sua devida responsabilidade comunitária, recebem o mesmo salário mensal de acordo com os dias trabalhados. Se for de segunda a sábado, o mais comum, são aproximadamente 82 dólares americanos por mês. Pode parecer irrisório, mas a Índia tem um dos menores custos de vida do mundo e o padrão da região é ainda mais simples, o que permite uma vida minimamente digna. Vale resaltar que muitas dessas pessoas cresceram num meio onde existiam pouquíssimas oportunidades de prosperar e ganhar a vida.


Além das responsabilidades de cuidar dos campus, existem diversos negócios sendo feitos nas oficinas. Ali se produzem absorventes, mosquiteiros, brinquedos de madeira, cadernos, sacolas com materiais reciclados e até painéis solares. Têm também uma rádio para compartilhar discussões em andamento. Muitos produtos são vendidos para fora, garantindo assim parte do sustento dos membros. Eles são tão organizados que até o relatório financeiro anual está disponível no site.


Os painéis solares fazem parte de um projeto ainda maior que treina mulheres do mundo todo para fornecer energia aos seus povoados. Uma rede foi construída entre 64 países da qual mulheres são escolhidas e vão à Tilonia para um treinamento de seis meses sobre energia solar. Elas saem de lá como engenheiras aptas a treinar e construir painéis para as casas da vizinhança no seu país de origem. O desafio mais surpreendente é que como elas não tiverem acesso à educação elas falam pouquíssimo inglês, então a comunicação é com sinais e materiais já construídos.



Conhecemos uma turma de quarenta mulheres de doze países de continente diferentes, como Guatemala, Congo e Mianmar. Pudemos conversar mais com as latinas, claro, e sentimos que apesar de estarem aprendendo não é uma experiência fácil pra elas por estarem longe da família, comendo a comida local e com as limitações na comunicação. Sinceramente ficamos na dúvida em relação aos lados positivos e negativos, mas os números mostram que é um trabalho incrível que já forneceu eletricidade a mais de 40.000 casas rurais pelo mundo e já empoderou muitas mulheres.


Além de passear muito pelos projetos internos, pudemos conhecer um pouco dos vilarejos em volta e foi um privilégio muito grande poder ver como vivem ali. Vimos pessoas dormindo do lado de fora da porta de casa, já que a brisa externa é melhor que o calor intenso dos ambientes fechados (já tinha escutado isso, mas nunca tinha visto). Quem tem coragem de dormir na porta de casa ou do prédio em São Paulo?… Por sorte vimos até um casamento acontecendo em plena noite de terça-feira, onde o noivo, montado num cavalo branco todo enfeitado, percorria as ruas, com muita música e mais de cem pessoas em volta, a caminho da casa da noiva. (Não pudemos tirar foto, pois assim nos pediram.) Nos contaram que na zona rural todos os casamentos ainda são arranjados entre famílias, enquanto nas grandes cidades isso acontece em apenas metade deles. Culturas!



Dentre tantas coisas que conhecemos lá, as mais impactantes foram as Night Schools (escolas noturnas). Elas funcionam para crianças a partir de seis anos até jovens de quinze, sendo 70% meninas. Apesar da missão admirável de educar, a primeira pergunta que me surgiu foi “porque de noite?”. Infelizmente em razão da pobreza, as crianças trabalham no campo desde cedo para ajudar na renda familiar. Assim como aprendemos na África, a família prioriza os estudos dos meninos por acreditarem que têm maiores chances de trabalho no futuro, por isso as meninas acabam trabalhando em casa, nas plantações e com os animais.


Assim a única hora livre do dia para estudar é depois do trabalho. Entra ai um breve dilema para opinar se isso é correto, pois essas escolas “aceitam” o trabalho infantil, mas pensando em respeitar as raízes e dar um passo de cada vez para o progresso, pode ser um “melhor que nada”. Fica para sua reflexão.


Pudemos participar de uma aula no vilarejo de Baghpura com o seu coordenador, Rameshwar. Foi uma emoção muito grande ver crianças aprendendo números sentadas no chão com pouca luz. Eles têm lousa e giz para os exercícios. Os professores são membros da organização do Barefoot e moram próximos ao local onde dão aula das 19h às 22h. Hoje são 85 escolas educando 2000 crianças.


Os professores que conhecemos eram extremamente carinhosos e brincavam muito durante as aulas, o que nos inspirou muito ao sentir aquilo tudo acontecendo. Uma curiosidade da cultura que eles mesmos riram aos nos contar, cientes da estranheza que é para nós, é que um dos meninos já estava casado. Ele tem oito anos e está, na verdade, prometido para a família da esposa. Pelo menos eles se casarão e morarão juntos, efetivamente, aos dezoito anos. Enquanto ouvíamos tudo isso, os dilemas não paravam de agitar a cabeça… Contrastes mesmo!



As realizações do projeto são inquestionáveis, porém, como sentimos em muitas organizações que conhecemos ao longo dos meses, os voluntários não têm um papel exatamente claro. Conhecemos um casal mexicano, uma brasileira e um indiano que estavam aprendendo e contribuindo cada um do seu jeito, que é o que mais importa. Mas para recomendar que você vá participar é fundamental alinhar expectativas. O mais fundamental é lembrar que aquelas pessoas são mestres no que fazem e não faz sentido querer redesenhar tudo do zero. Porém, problemas existem, disposição para melhorar é sempre bem-vinda e muito efetiva, principalmente com amor.


Gratidão a todos amigos do Barefoot que gentilmente cuidaram de nós. Em especial ao Ramniwas, ao Rameshwar e ao voluntário Harsh que nos apresentou muitas pessoas.


É difícil transmitir sensações com palavras, mas o que fica dessa experiência marcante é que incluir a todos na sociedade, seja do tamanho que for, não é apenas dar trabalho e dinheiro. É permitir que pessoas sejam alguém, que participem e saibam que merecem viver com dignidade. Reconhecer que todos temos direitos e que ignorar outros em razão do formato do seu corpo ou da sua classe social é absolutamente desumano.


Ter consciência de que isso está errado é natural, mas sabemos que vivemos tolerando desigualdades e discriminações todos os dias.


Bom, a mudança está ao alcance de todos, basta querer.


Se quiser conhecer mais, visitar e doar o site é bem explicativo: http://www.barefootcollege.org


Felipe.

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