Chegamos ao Camboja já bastante ambientados com o sudeste asiático, mas a verdade é que cada lugar tem as suas magias e peculiaridades, ali não seria diferente!
A história do país traz uma marca profunda deixada pela violência e crueldade que se instalou durante o governo do Khmer Rouge, entre os anos de 1975 a 1979. Sob o comando de Pol Pot, foi arquitetado e implementado um golpe de estado com a intenção de reconstruir a nação do zero, obviamente de acordo com as vontades do líder.
O resultado disso foi um massacre violento de grande parte da população, começando por intelectuais, professores, advogados e jornalistas. As escolas foram banidas do país e qualquer tentativa contrária a esse novo regime era punida com tortura e morte. Estima-se que mais de dois milhões de pessoas foram mortas nesses anos.
Todas essas histórias parecem muito distantes da gente, até encontrarmos com alguém que tenha sentido isso na pele, né?
Pra nós essa pessoa foi a radiante Ponheary Ly, uma cambojana de cinquenta anos que mora em Siem Reap, sorri como uma criança e se emociona com as suas próprias histórias.
Durante o regime do Khmer Rouge o pai de Ponheary, na época professor, foi cruelmente assassinado e a partir de então, ela, a mãe e os irmãos passaram a lutar pela sobrevivência. Movida pelo exemplo do pai, com a saída de Pol Pot em 1979, Ponheary continuou os seus estudos até se tornar professora e guia turístico.
Foi trabalhando como guia que ela passou a observar a enorme quantidade de crianças que trabalhavam nas ruas e estavam longe da escola. Mas como Ponheary é do tipo que fala muito e faz mais ainda, ela passou a sugerir aos clientes turistas que ao invés da gorjeta para ela, contribuíssem com materiais, uniformes e matrículas escolares para aquelas crianças. Essa seria a fórmula perfeita para não incentivar o trabalho infantil e facilitar o acesso à escola.
Essa ideia foi ficando séria e se tornou a The Ponheary Ly Foundation depois que uma turista do Texas, Lori Carlson, se apaixonou pela iniciativa e colocou a mão na massa para levantar fundos e impactar ainda mais crianças. Hoje Lori é a presidente da fundação e ao lado de Ponheary beneficiam mais de 2.500 crianças, que recebem gratuitamente materiais, uniformes e podem frequentar a escola diariamente. Além disso, a fundação paga aos professores mensalmente um complemento salarial, já que o valor pago pelo governo é baixíssimo. Outros projetos como jardinagem e aulas de informática também são parte da iniciativa, além das bicicletas oferecidas a quem mora muito longe.
Nós visitamos uma das escolas na companhia da Ponheary e foi um dia muito inspirador. Distribuímos quatro pães a cada uma das crianças que depois foram recheados com leite condensado. Eu quase perdi a compostura com a parte do leite condensado – tipo tomar direto na latinha – mas isso foi só um detalhe. Perguntei a ela o porquê do número quatro e ela respondeu na maior sinceridade do mundo: “No começo eu dava apenas um para cada criança, mas percebi que ao invés de comer, elas guardavam para levar pra mãe”. Hoje em dia ela nunca dá menos de dois, seja lá o que for. Isso até me lembrou das festas de casamento que saio com 156 bem casados na bolsa pra levar pra minha mãe.
Durante a conversa que tivemos com a Ponheary deu pra se emocionar com a pureza e a verdade das palavras. Também dá pra se contagiar com a risada dela, que é quase tão descontrolada quanto a minha. O vídeo mostra mais e vale a pena assistir.
Nos dias seguintes em Siem Reap pudemos notar que é a cidade com a maior concentração de empresas sociais. Vamos falar mais sobre esse conceito em um novo post, mas para adiantar, empresas sociais são aquelas criadas não só com o objetivo de obter lucro, mas também de oferecer uma oportunidade de melhorar a vida de pessoas que vivem em situações de vulnerabilidade, seja por meio de uma vaga de trabalho ou da venda de um produto/serviço.
Esse é o caso do HAVEN Training Restaurant, um dos lugares mais charmosos e agradáveis que eu já conheci. A ideia nasceu de um casal suíço – Sara e Paul – que trabalharam por sete meses em um orfanato no Camboja e perceberam que aquelas crianças não tinham ideia do que fariam e pra onde iriam depois que deixassem o orfanato.
Voltaram pra Suíça com uma ideia na mala e trabalharam duro até tirar o HAVEN do papel, que nasceu em dezembro de 2011 como um restaurante e centro de treinamento de jovens e adultos que vivem em zonas rurais desprivilegiadas. Inclusive, vários dos jovens que se formam com a ajuda da Ponheary Ly conseguem uma vaga nos treinamentos oferecidos pelo HAVEN e isso os ajuda a encontrar trabalhos em restaurantes e hotéis da cidade.
A comida é deliciosa, a equipe é MUITO simpática e o ambiente é um charme. Me senti muito especial podendo pagar por uma refeição em um lugar agradável que ainda contribui para melhorar a vida de dezenas de jovens. Por isso, se passarem por Siem Reap o HAVEN é parada obrigatória.
No mesmo dia fomos assistir ao espetáculo do Phare Circus, um show de circo, música e acrobacias. Os artistas são jovens que vivem em zonas rurais bastante vulneráveis, estando inclusive sujeitos à exploração sexual que, assim como na Tailândia, também é comum por ali.
Crianças, órfãos e adolescentes que antes trabalhavam nas ruas chegam ao Phare Ponleu Selpac, uma organização sem fins lucrativos, para estudar artes e encontrar novas formas de sobreviver e ajudar a família. Os primeiros alunos surgiram há vinte anos e vieram de um campo de refugiados que se formou durante o governo do Khmer Rouge. Hoje o Phare tornou-se uma empresa social, em que se investe na formação dos artistas, que recebem um salário justo e muito motivador.
A gente se divertiu muitíssimo e ao final ainda tietamos, tiramos foto e conversamos um pouco com o elenco. Se não bastasse, na saída tem uma lojinha linda cheia de artesanatos e bijuterias produzidos nos vilarejos rurais cujo valor é destinado a manter o show e aprimorá-lo ainda mais. Uma noite de circo, pipoca e muita energia boa.
De lá partimos pra Phnom Penh onde tivemos uma das experiências mais divertidas e emocionantes da vida! Era dia dos namorados e o Fe preparou uma surpresa – não, ele não cortou o cabelo! – Saímos para jantar em um lugar “diferente” chamado Dine in the Dark.
É um restaurante com o objetivo de gerar oportunidade de trabalho a jovens com deficiência visual, que no caso perderam totalmente a visão. Muito mais que isso, é uma verdadeira experiência de empatia e vou contar o porquê.
Chegando lá escolhemos o cardápio e a bebida, em seguida o guia Jojo nos conduziu ao segundo andar do restaurante. Fomos andando de trenzinho e eu já estava rindo completamente descontrolada. A cada passo ia ficando mais e mais escuro até entrarmos no local do jantar… olho aberto e olho fechado dava na mesma. Não dava pra ver absolutamente NADA e o jantar seria todo assim: no escurinho completo.
Eu não parei de rir por um minuto. Primeiro porque eu fiquei um pouco tensa de não saber me virar direito na escuridão e segundo porque eu com minha delicadeza de elefante biquei 65 quinas, tropecei em mim mesma, quase atropelei o Jojo e derrubei tudo da mesa.
A comida chegou e enquanto o Fe pacientemente utilizava os talheres, eu já tava mandando ver o meu camarão com a mão mesmo. Inclusive, ai está uma boa dica pra um primeiro encontro… não rola aquela vergonha de comer babando ou ficar com um alface preso no dente. Ninguém te enxerga e você não enxerga nada! Tá tudo liberadoooo. O Fe atacou até a cumbuca de folhas achando que era comestível. O Jojo estava sempre por perto pra encher nossa taça de vinho, tirar alguma dúvida e dar risada com a gente também.
Mas em meio às gargalhadas, mãos sujas e comida fora do prato, a gente ficou meio em transe pensando como essas pessoas são especiais. Especiais no sentido de mágicas, incríveis, super poderosas! A gente não parava de se perguntar como elas conseguem viver assim o dia todo, a semana toda, a vida toda?! Foi dai que eu conclui que ser deficiente, seja lá qual for a deficiência, é ser mágico e é transformar a ausência de algo no mais puro amor pela vida.
Despertamos uma empatia colossal por essas pessoas, que muito mais do que nós, enxergam com a alma e o coração. Tenho certeza de que enxergam muito mais profundo mesmo. Simplesmente porque não enxergam o que você tem. Enxergam o que você é. Não enxergam seu carro, sua roupa, seu anel de brilhantes. Enxergam sua gentileza, sua educação, seu carinho e simpatia. Eles têm olhos para o que realmente importa e se conectam de coração pra coração.
A moral da história é que terminamos o jantar em silêncio, refletindo sobre a nossa condição, sobre o que temos feito dela e sobre de que forma acolhemos essas pessoas mágicas. Pra mim que enxergo, ouço, cheiro, falo (e muito), caminho e me mexo toda, não tenho nada de especial pra mostrar. Talvez a energia do meu amor e da minha gratidão genuína por poder fazer tudo isso.
O Jojo que nos serviu com tanta gentileza e tranquilidade, que convive com a sua escuridão dia após dia e nos guiou delicadamente para viver um pouco do seu mundo, me mostrou que está mais do que na hora de todos nós enxergarmos magia em quem quer que seja, principalmente em quem nos ensina a identificá-la.
Um restaurante como o Dine in the Dark faz isso muito bem, quando nos permite compartilhar um pouco desse mundo encantador de quem só enxerga o que está alcance do coração e dá oportunidade de convívio social e profissional aos mágicos que transformam escuridão em lições de vida.
E foi assim nossa passagem pelo Camboja… conhecendo pessoas e iniciativas que pretendem mostrar ao mundo a mensagem de que não podemos perder a esperança e que cada levantada do sofá pra mudar algo que não vai muito bem muda a vida de muita gente, que vai mudar a vida de muito mais gente, que vai mudar a vida do mundo inteiro.
Sejamos então capazes de aprender com a pureza das crianças, com a coragem de quem enxerga além do dinheiro e com a magia de quem consegue fazer do escuro um caminho ainda mais brilhante pra seguir.
Gabi.
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