Laos e Vietnã estão entre os cinco países que se declaram socialistas até hoje. Os outros são China, Coreia do Norte e Cuba. Um imenso motivo para aguçar a curiosidade de ver na prática toda teoria que já li sobre esse modelo econômico.
Não me intitulo socialista porque ainda preciso estudar mais para compreender seus diferentes ideais e consequências a fundo, mas tenho convicção de que os sistemas não socialistas atuais mais comuns não funcionam para todos. Não resisto a dar exemplos, mas o estímulo ao consumismo desnecessário de recursos finitos é pegadinha e a busca por oportunidades que tiram o máximo possível dos outros é sacanagem, fora a lenda de que crescer o PIB é em prol da igualdade.
Pesquisei sobre a história e o momento desses dois países porque não dá pra descobrir tudo nas ruas, mas deu pra sentir que estão em pleno desenvolvimento.
O Laos parece um pouco oprimido, com pessoas mais recatadas e bastante gentis. Existem sérias críticas a violações de direitos humanos e é um país mais “reservado”, sem muitas empresas globalizadas. De qualquer forma o que mais me impressionou foi que mesmo com dados relatando uma pobreza grave, durante uma viagem de doze horas de ônibus pelo interior só pude ver casas de alvenaria, da mais simples a mais moderna, que aparentavam ser bem estruturadas e havia eletricidade por todo o percurso. Ainda assim, um detalhe que me incomodou é que os edifícios públicos (como os palácios dos ministérios) são bem mais novos e pomposos que os demais, até mesmo que o museu nacional, que está velho e mal conservado. Dá pra ver a diferença na foto, de dentro do museu, com um palácio oficial logo à frente.
Uma surpresa positiva que senti lá, como em poucos países, é que a estratégia de tirar vantagem de turistas ao cobrar mais caro não é utilizada… Sempre nos diziam um preço justo sem adicionais. Aleluia, fiquei até chocado! Só é muito, muito triste ter que ficar feliz quando te tratam da forma correta, parece que está tudo no caminho errado mesmo… Parabéns para os laosianos, alguém precisa descobrir o segredo deles pra propagarmos.
Em nossas buscas por experiências, por ajuda do destino, ao caminharmos por Luang Prabang, vimos um grupo de pessoas conversando na organização Big Brother Mouse. Ela tem o objetivo de promover a educação em comunidades rurais através da publicação de livros, além de organizar encontros semanais onde voluntários estrangeiros se juntam com laosianos para falar e treinar o inglês. Chegamos timidamente no meio de uma sessão e um dos participantes, um noviço budista chamado Thoungxai Munvitai, nos convidou gentilmente para participar.
Ficamos duas horas contando e ouvindo histórias dos jovens que nos mostraram ainda mais a realidade do país. Como o Steve, que trabalha vinte horas por dia num hotel (dentre cochiladas quando os hóspedes dão uma folga) e vive sozinho, longe da sua família que trabalha no campo.
Ao final da sessão tive a experiência de consumo mais inesperada da minha vida. Thoungxai nos pediu ajuda para ir ao mercado de rua noturno comprar uns presentes para sua mãe e irmãos que vivem em outra cidade. Ele os visitaria no fim de semana seguinte e queria atender aos pedidos de sua mãe. Quando na vida eu achei que faria compras com um noviço? Nunca. Além de presenciar um ato de consumo necessário (que hoje é raro), notei o desapego dele para escolher a tenda e o modelo. Em vinte segundos ele escolheu, pagou e levou. Ficamos contentes em ajudar e carregar as sacolas para evitar o seu constrangimento, já que não é habitual monges e noviços saírem às compras.
Nos demos tão bem que Thoungxai se ofereceu para nos mostrar a cidade no dia seguinte. Ficamos muito honrados. Muito mais que caminhar pela cidade, ver templos e rios, pudemos aprender mais sobre meditação e conhecer de perto a vida de quem se dedicou à religião nos últimos seis anos. Ele tem dezenove anos e é de uma família simples. No Laos, quem opta por estudar para ser monge tem um custo de vida baixíssimo, enquanto também aprende o currículo convencional aplicado nas escolas públicas. O noviço consegue pagar a contribuição para morar no monastério por meio de doações que recebe todos os dias durante a caminhada matinal pelas ruas, quando recebe comida, dinheiro e objetos da população.
Ele nos contou que decidiu ir para o monastério porque, além de aliviar os custos da família, ele queria ajudar a mãe com o que sobrasse das doações. Isso acontece lá por ser uma forma de ganhar a vida num país onde não existem oportunidades para todos. Ele terminou o colégio esse ano e vai mudar para Vientiane (a capital) para estudar na faculdade de letras e decidir seu rumo. Isso porque ao graduarem-se no ensino superior os noviços têm que decidir se querem ser monges e dedicar suas vidas ao budismo ou se preferem seguir outra função social.
Eu não tinha ideia de nada disso e o grande aprendizado para mim foi desmistificar que todos que decidem se dedicar à religião entram totalmente certos disso e nunca mais podem sair. Pelo menos nessa não é assim, não sei como funciona nas outras. Outro ensinamento interessante é que a nossa sociedade nos impõe tantas angústias e medos do futuro que até mesmo nosso amigo, generoso e religioso, confessou que a sua preocupação hoje é a insegurança de como será a vida na faculdade, numa cidade desconhecida e se conseguirá se sustentar lá.
Essa preocupação passou a ser comum demais hoje em dia, infelizmente, mas eu tinha esperança que praticar meditação e acreditar numa força maior nos tornava imunes a esses sofrimentos psicológicos. Eu ainda acredito que essa paz é possível.
Foi um dia intenso e muito emocionante. Ao final, depois do pôr do sol no seu antigo monastério às margens do rio, ele nos presenteou com uma pulseira, energizada por um monge com poderes mágicos, segundo nos contou. Ele as mentalizou ali mesmo e disse que já nos considerava irmãos mais velhos. Foi difícil segurar a emoção ao nos despedirmos e caminharmos de volta para o hotel, pensando na pureza, inocência e no carinho de um novo irmão tão despretensioso. Seguuura ai!!!
Foi assim que terminou nossa passagem pelo Laos e seguimos para o Vietnã.
O Vietnã está bem mais soltinho, seus centros de negócios cheios de prédios altos preocupados com a beleza exterior e toneladas de motos nas ruas no estilo de condução “sem noção, bateu azar o teu”. A economia se abriu para a globalização e vimos inúmeras redes de fast food, mas ainda existem muitas regras de controle estatal. Uma delas é que pelo menos 50% dos empregados seja vietnamita, em todos os níveis hierárquicos. Outra mais autoritária é que como existem produtos estatais (fabricados e vendidos pelo estado), qualquer tipo de publicidade das empresas privadas é controlada. Assim tudo tem que ser aprovado e pode até não ser, caso represente um risco para as vendas do estado. É sério, isso sim é uma concorrência fácil de ganhar e o detalhe é que o governo ainda ganha nos impostos das vendas dos outros!
Parece um socialismo modernizado e flexível, já que em seu conceito tradicional o estado controla tudo. Eu queria poder acreditar que o objetivo dessa abertura é gerar mais renda e desenvolvimento para o país, porém é difícil confiar ao considerarmos seus altos índices de corrupção. É uma pena pensar que as tentações por ter dinheiro puderam corromper até a organização econômica de todo um país. – Isso é uma percepção bem inicial minha, caso não concorde comente, por favor.
Quando chegamos a Hanói, senti uma cidade bem apertada e pessoas muito sorridentes! Vendedoras de rua estão a cada esquina, oferecendo de tudo. Precisamente sobre elas que pudemos aprender no Museu da Mulher Vietnamita. O documentário Street Vendors – Their Voices (“Vendedores de rua – suas vozes” – tradução livre) retrata a vida dessas mulheres e foi muito impactante poder ouvir com detalhe (e legenda) como é a vida que levam.
A maioria delas deixa a família e filhos em sua cidade natal no interior e muda para a metrópole pra ganhar uma renda. Elas vendem frutas, chapéus, chinelos, artesanatos e sabe-se lá em que condições vivem, mas muito provavelmente nada dignas. Para se ter noção de valor, por mais que o custo de vida no Vietnã seja muito baixo, uma delas disse que com toda essa luta ela consegue mandar 12 dólares pros filhos a cada três semanas.
Ao sairmos do museu com esses depoimentos revirando a cabeça, vivemos algo intenso que provou mais uma vez o poder da informação, de saber a verdade, enxergar pessoas reais e não apenas dados estatísticos. Mesmo tendo vivido muito essa sensação ultimamente, ali foi ainda mais forte, talvez porque as vimos dando duro pelas ruas sem imaginar a realidade por trás daquele trabalho. Saímos de lá com uma vontade incontrolável de fazer algo por elas e seguimos fieis a crença de que mesmo pequenos gestos bem intencionados geram uma reação em cadeia de coisas boas.
Decidimos então comprar frutas (como lichias que são bem boas por sinal) de todas as vendedoras que víssemos ao caminharmos de volta para o hotel. Independentemente do preço, porque algumas aplicam a “taxa extra de turista”, nos colocamos “cegos” a esses detalhes por um dia e compramos uma pequena quantidade dando sempre 5 dólares (o equivalente em dongs vietnamitas). O que significa que quem cobrasse o mais justo, como 1 dólar, ficava com um troco mais generoso do que as que cobravam mais, como 3 dólares.
Sem entrar na questão do valor que cobram, foi uma força sobrenatural poder ver o sorriso gigante que TODAS davam ao entender que deixaríamos essa “caixinha” pra elas. Acho que muito além do valor financeiro adicional que elas ganhavam (no máximo 4 dólares), podíamos sentir que era uma alegria por alguém se importar com elas, como um reconhecimento pelo seu esforço e uma gratidão por sentirem merecer esse algo a mais que quase ninguém dá.
O ponto aqui não é desigualdade social, desemprego ou baixa renda, é apenas mérito, se sentir valorizada e ganhar um carinho a mais. A dúvida no fim ficou na dificuldade de saber se quem ficava mais maravilhado com a situação éramos nós ou elas. Bom desafio! Foi uma tarde de boas energias que consideramos em nosso orçamento como “investimento pessoal em empatia diária para entretenimento mútuo”, pois foi bem divertido!
No Vietnã não conseguimos ir ao interior, pois o trem demoraria no mínimo quarenta horas em nosso trajeto e já tínhamos o voo de saída. Assim, a segunda grande cidade ao sul que visitamos, Ho Chi Minh, é mais moderna com arranha céus, bares na cobertura e lojas de luxo por todo lado. Ela se chamava Saigon e teve seu nome mudado em homenagem ao ícone de independência do país, uma figura mundial do comunismo.
Na procura por organizações sociais fomos muitíssimo bem recebidos por Cherie Nguyen que está, na verdade, em fase de arrecadação para iniciar a Quatmo Foundation (não tem site ainda). Independentemente de não ter visto as atividades e ainda não terem resultados, foi uma aula incrível sobre a realidade do país aos olhos de uma jovem empreendedora social vietnamita.
Sua missão será de fazer uma mentoria a jovens para orientá-los a encontrar o trabalho que se identifiquem e realmente amem. Hoje isso é um grande desafio, porque pouquíssimas escolas e mesmo famílias têm consciência de que trabalhar com propósito é totalmente relacionado à realização e felicidade. Eu diria que principalmente em razão da selvageria capitalista, onde a regra é querer ter um emprego “bom”, ganhar bem e ponto final.
Um dos critérios de seleção, em particular, dos que participarão do programa de dois anos chamou minha atenção. Ao contrário da competitividade que se instiga, uma exigência é que os jovens estejam cientes que farão parte da orientação para encontrarem o seu melhor e que não participem com a expectativa de ser melhor que ninguém. É um ponto chave para o autoconhecimento. Foi inspirador!
Acho que dá pra sentir um pouco da intensidade desses momentos, aprendendo com pessoas e suas histórias totalmente diferentes. Somos todos únicos mesmo e se conhecer parece mágico. Uma simples conversa nos coloca imaginando como pode ser a vida dos outros, os medos, as fontes de felicidade e o que podemos levar e deixar em troca. Momentos que nos ensinaram coisas que só eles poderiam e que não estão em livro nenhum.
Precisamos estar sempre abertos a ouvir e entender o que as sutilezas nos comunicam. A empatia ajuda a enxergar mais e parece que automaticamente a querer fazer os outros se sentirem melhor. Quem sabe vira um surto global! Tantos ruins já deram certo, um bom também tem chance!
Felipe.
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