O país é afastado de todos os outros, tem mais de sete mil ilhas e é onde melhor se fala inglês, dentre todos os que passamos até agora. Na maioria das escolas esse é o idioma oficial e inclusive as matérias são dadas em inglês. Não conhecia essa forma de ensino (que vale no público também) e sem dado estatístico nenhum ficou claro que é altamente eficaz. Não é que todos falam inglês fluentemente, mas conseguíamos nos comunicar com a maioria das pessoas, o que não foi possível nem mesmo nos países onde o inglês é uma das línguas oficiais. Acho que esses ai a nomeiam como oficial “pra inglês ver”…
Manila é tão caótica quanto São Paulo, com áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas alternando a cada esquina e um trânsito pesado com seus ônibus antigos bem peculiares. Esses fatores até diminuíram a saudade de casa… Apesar de ser um povo educado, enfrentamos muitas situações com gente querendo tirar vantagem de nós, uma pena. Nos últimos dias fomos ao vulcão Taal e na volta para o hotel eu me sentia carregado daquela sensação de ser enganado, sabe? Isso porque o moto-taxi até o lago, o barco e o cavalo (que praticamente te obrigam a usar) foram todos superfaturados e chegando ao cume até a intimidação usaram. Com o guia muito cansado, você tem que descer do cavalo e ouvir a amiga do guia falando “ah que tal comprar uma bebida pro seu guia exausto?”. Depois de pagar tudo caro ainda nos exigiram gorjeta e você se sente totalmente constrangido e mal tratado.
O oportunismo de tirar mais dinheiro do próximo, custe a falta de respeito e cordialidade que custar, está contaminando a todos. Mas mesmo assim, porque será que existem pessoas imunes a esse veneno psicológico, que ainda são capazes de tratar os outros corretamente? Me lembro bem que certo ou errado é um instinto humano. Se não for DNA com defeito, ainda tenho esperança que seja uma educação social, aquela que vai muito além da escola e da riqueza. Não acredito que exista correlação alguma entre classe social, trabalho, gênero e idade, até porque quem melhor nos trata, normalmente, são pessoas simples e puras, não são aquelas mais “ricas de sucesso”.
Uma experiência intensa que tivemos foi em outra cidade, Tacloban, com a organização Liter of Light que tem a missão de prover iluminação solar acessível e sustentável para pessoas com acesso limitado, ou nenhum, à eletricidade. A inovação que deu início a tudo foi a de uma garrafa PET com água e substâncias para propagar a luz do sol através de uma pequena fresta no telhado para locais fechados e escuros onde não há eletricidade. Essa invenção funciona com elementos nada sofisticados, de fácil acesso, baixo custo e descartáveis. Uma curiosidade que não desconfiaríamos é que foi criada por um mecânico brasileiro, o Alfredo Moser, inspirado em ajudar os outros e espalhar a ideia sem pretensão alguma. Fazemos questão de conhecê-lo na volta.
Hoje, na verdade, o trabalho da organização é feito com iluminação a base de energia solar, pois assim beneficia as pessoas durante a noite também. Por três dias participamos de um mutirão com ajuda do exército, onde o objetivo foi instalar 500 equipamentos nas casas e ruas de dois campos transitórios, New Kawayan e Cabalawan. Esses vilarejos foram construídos pelo governo e por organizações de desenvolvimento internacional para as famílias que perderam praticamente tudo no tufão Haiyan em 2013. Foi um triste desastre natural que tirou a vida de milhares de pessoas. Eles usam transição no nome porque essas casas não são permanentes, muitas outras de alvenaria estão em construção para abrigar essas famílias definitivamente. Algumas já moram nelas inclusive.
Infelizmente energia, água e saneamento são escassos. Além de precisarem de iluminação solar para a noite, recebem um caminhão de água não potável três vezes por semana, que não é suficiente para todos, e usam banheiro comunitário. Além de estarem em uma área remota, o rio ao lado ser totalmente contaminado e os poços terem muito pouca água, os moradores ainda têm que usar algum transporte para comprar água potável.
Mesmo tendo visto isso em muitos lugares ao longo desse ano, ali em particular tive um momento que pude sentir essa limitação. Primeiro que quando chegou o caminhão quis ajudar a carregar os galões e baldes que formam fila para coletarem e transportarem a água à casa de cada um. Depois de umas vinte caminhadas com dez litros em cada mão deu pra sentir no corpo o trabalho que têm para apenas de ter água em casa. Até porque eu estou acostumado a escolher a temperatura e apenas girar a torneira…
Segundo que depois de muito suar e me sujar eu quis lavar as mãos e molhar o rosto, mas me peguei pensando como eu poderia usar um litro daquela água preciosa? Além de que seria intimidador pedi-la como voluntário, seria absolutamente injusto querer usá-la sendo que ao voltar pro albergue eu teria água quente à vontade. É como se eu tivesse sentido a consequência da desigualdade por meio de uma vontade tão tão elementar como lavar as mãos. Por mais que possa ter sido um breve momento, foi impactante sentir assim o que é viver com dignidade.
No último dia participaram da instalação voluntários de uma multinacional de bebidas que é apoiadora da organização. Eles trabalham numa fábrica da região que utiliza garrafas PET diariamente, então têm um maior entendimento desse material. Na contramão dessa responsabilidade ainda maior em relação ao uso de plástico, presenciei um gesto que me frustrou absurdamente. Com a facilidade e conforto de ter água mineral, refrigerante e comida à vontade o dia todo, muitos voluntários tiveram a coragem de ativamente desperdiçar. Ao final do almoço muitas das garrafas que vi jogadas no lixo tinham cerca de um quarto do líquido ainda.
Ai de repente entrei num pesadelo, onde via que pessoas que se dizem socialmente responsáveis e representantes da indústria estavam literalmente desperdiçando suas próprias bebidas. Elas estavam fisicamente presentes em meio a um grupo de pessoas com acesso totalmente restrito a água, mas pareciam nem se importar com isso. Quando acordei percebi que se fosse eu, ficaria com vergonha de ser voluntário parte daquele grupo. As pessoas desfavorecidas ali entre nós, poderiam me confundir com um dos constrangedores e se sentirem desrespeitadas.
Ainda assim sou suficientemente positivista para acreditar que esse dia gerou algum bom fruto na cabeça de alguém ao conhecer a realidade dali e trocar experiências com as famílias. Independentemente de origem, religião e crenças acho que todos nós concordamos que desperdiçar quaisquer recursos é um desrespeito à natureza e a nós mesmos, mas hoje a maioria se esqueceu porque é muito fácil não se importar. Não tem punição, ninguém fala mal de você, não danifica o seu status, nem sua demonstração de sucesso. Mas e a consciência? O certo ou errado? O respeito? Está tudo muito confuso, precisamos mudar as prioridades. Vamos que dá!
Um obrigado especial à voluntária Emma Costa, quem gentilmente coordenou nossa comunicação e tornou essa experiência possível!
Valeu cada minuto e aprendemos muitíssimo das Filipinas. As pessoas que moram no campo foram extremamente gentis e o inglês permitiu que conversássemos mais. A Gabi liderou a gincana com a criançada que não parava de segui-la e eu dei muita risada com as mulheres mais fortes que queriam levar os baldes sozinhas e eu levava um escondido seguindo elas. O exército todo foi muito carinhoso conosco, um sargento que foi especialmente comunicativo desde o começo até comprou sorvete para as crianças. Generosidade pura!
Ficou a lição que precisamos relembrar o bê-á-bá e nutrir a conscientização para melhorar o que não está indo bem. Imagina se tivéssemos sido “normalmente” tratados por todos sem malandragem, se não víssemos tanto desperdício e se todos estivessem presentes? Esse texto seria apenas de boas notícias e empolgaria todos a conhecer! Mas ainda assim as experiências se fazem pelas pessoas especiais que participam delas, e lá foram muitas. Não é um exercício fácil, mas além de acreditar que tudo tem seu lado bom, vale levar só as energias positivas de qualquer lugar, faz bem pra você e para quem vai te sentir assim.
Felipe.
Comentários