A China é uma verdadeira aula de antropologia. Tem muita gente em absolutamente todos os lugares e as cidades conseguem ser completamente diferentes entre si.
A República Popular da China, como é formalmente conhecida, é o país mais populoso do mundo, com mais de 1.3 bilhão de pessoas (isso explica muita coisa…). Sob um sistema unipartidário, o país é governado pelo Partido Comunista da China e é considerado uma das maiores potências econômicas do mundo. Passamos pelas cidades de Guilin, Guangzhou, Shenzhen e Beijing, mas saímos com a sensação que pra conhecer a China de verdade, precisaríamos de uma vida inteira.
Um misto de pessoas ocupadas, atrasadas e sérias, que logo se rendem a um sorrisão com um simples e despretensioso “nihao” (olá em mandarim). Vi também muita gente cansada… Não era raro parar pra comprar uma casquinha de baunilha e encontrar o atendente debruçado na bancada, tirando uma soneca gostosa. Até os seguranças do metrô eram contagiados pelo bicho do sono.
E por falar em metrô, esses eram momentos nostálgicos que me faziam lembrar da escola, quando batia o sinal ao final do recreio. Eu não sei você, mas naquela época eu, no auge da maturidade, ouvia o sinal e saía correndo/gritando pra sala de aula. Não sei exatamente qual era o meu sentimento, mas arrisco dizer que era uma combinação de desespero, medo de atrasar e vontade de gritar pedindo pra alguém me salvar dali. O metrô da China é assim. Quando as portas se abriam as pessoas corriam pra dentro ofegantes e disputavam os assentos. Eu sempre perdia, obviamente.
Furar fila, jogar lixo na rua e fazer xixi em qualquer lugar também me pareceram práticas bem comuns e, acredite, isso não é crítica, apenas a observação de uma brasileira que já conhece essa história de outros carnavais.
Mas a China é majestosa em paisagens, em gente que trabalha duro e, principalmente, bugigangas. Eu, que me esforço a cada dia para consumir menos e com mais consciência, me vi querendo comprar adesivos de bichinhos e canetas fofas. No final, comprei um ferro a vapor.
E foi justamente por esse apelo consumista que a China nos remete, que sonhávamos com o tipo de organização que gostaríamos de conhecer. O universo conspirou a favor e fomos recebidos pelo querido Wincent Ou, da Fair Wear Foundation, uma organização sem fins lucrativos, que desenvolve um dos trabalhos mais brilhantes que conheci relacionado à proteção dos direitos humanos e trabalhistas.
Funciona assim: marcas de roupa europeias que utilizam fornecedores localizados na China e em outros países da Ásia, como Indonésia e Filipinas, contratam a Fair Wear para inspecionar as fábricas e aplicar boas práticas de produção. Daí surge um relacionamento de três pontas, formado entre a empresa que vende as roupas, a Fair Wear e os fornecedores.
A Fair Wear visita as fábricas e se certifica de que os oito pilares que servem de base para as boas práticas de produção estejam sendo cumpridos. Isso implica erradicar por completo o trabalho escravo, forçado ou análogo a isso nas fábricas que fazem parte da vistoria, além de implementar melhores e mais saudáveis condições de trabalho aos funcionários.
Esse apoio é fundamental pra trazer transparência ao consumidor final. De acordo com o Portal do Ministério do Trabalho, no ano de 2014 o Brasil acumulava 609 empresas autuadas pela prática de trabalho escravo ou análogo. O Cadastro dos Empregadores foi retirado do site por força de uma liminar, mas pode ser obtido no site da organização Repórter Brasil, uma das maiores ativistas do tema no nosso país. Oremos.
Na sala do seu apartamento, entre uma xícara de chá e docinhos típicos, tivemos uma longa conversa com o Wincent, que nos ajudou a identificar as ciladas do consumo. Uma forma simples de se prevenir é avaliar a relação entre o preço e a qualidade do produto. De acordo com ele – e eu já suspeitava – quanto mais barato for o produto, mais chances tem de se encontrar alguma irregularidade ou abuso na linha de produção.
Eu já disse outras vezes que, pra mim, a forma como escolhemos nos vestir é um ato político. À primeira vista, o que enxergamos é a imagem, as roupas, o cabelo e os acessórios. Não é a toa que as marcas fazem tanto uso disso e da nossa insistência em sempre parecer mais (mais rico, mais bonito, mais chique, mais desencanado, mais moderno). Nessa onda, o que a gente leva dentro de si pouco importa, desde que a bolsa chegue à frente gritando alguns cifrões.
Pois se vestir-se e apresentar-se ao mundo é um ato político, o que dizer dos cidadãos que não se preocupam com a cadeia de produção do que chega ao seu armário? E mais, do que chega ao seu prato, a sua mesa de trabalho e de tudo aquilo que fazemos uso sem nunca parar pra pensar como é que chegou ali.
Wincent conseguiu autorização para nos levar em uma das fábricas de um conhecido, que apesar de não fazer parte da rede supervisionada pela Fair Wear, era um exemplo real do que é o mau costume pela China. Era um domingo, mas mesmo assim encontramos algumas funcionárias na linha de montagem de estojinhos de maquiagem. Sabe aqueles que vem com blush e um espelhinho dentro? Pois é, era isso mesmo que elas montavam, parafusavam, fechavam, embalavam… tudo com uma rapidez impressionante.
Foi ali que eu me dei conta de que até o bendito blush nosso de cada dia passou por um minucioso processo de produção, que pode ter envolvido centenas de pessoas que trabalharam por dezenas de horas sob condições questionáveis. Como se prevenir disso? Pesquisando sobre as marcas que estamos acostumados a comprar. Averiguar se já foram autuadas por práticas ilegais e abusivas, por testes em animais, pelo uso indevido de produtos químicos, nocivos à saúde e por ai vai.
A lista do que pode ser feito de mal a nós, consumidores, com o intuito de maximizar os lucros é extensa e bastante complexa. Entram indústrias têxteis, eletrônicas, agrícolas, instituições financeiras, seguradoras e etc. É claro que nem sempre temos a chance de fazer uma auditoria completa nas empresas, mas sabendo usar a internet como ferramenta de investigação consciente, é possível obter fontes confiáveis e determinantes para exercer nosso poder de escolha e consumo.
Como exemplo real, outro dia reparei em umas ruguinhas que começam a aparecer embaixo dos meus olhos. Contrariando o Fe, decidi que precisava de um anti-rugas e comecei a pesquisar as opções nas farmácias. Uma marca bastante famosa era também a que a oferecia os melhores preços e a maior variedade. Segurei a ansiedade e fui pesquisar sobre ela. As informações eram controversas e não encontrei conclusão sobre práticas abusivas. Mas encontrei uma outra marca, também mundial, que se apresenta de forma muito mais humana. Deixa claro que não realiza testes indevidos, só utiliza produtos naturais e ainda contribui de alguma forma com a comunidade local. Pronto, toda essa pesquisa pra decidir minha compra durou menos de vinte minutos.
A China nos força a todo momento a refletir sobre o consumo em suas mais variadas formas. A oferta de produtos é infinita e constante, o que até me fez pensar em comprar um ralador de vegetais portátil (juro). O que me impediu foi imaginar rapidamente aonde seria utilizado… “vai que eu resolvo descascar uma cenoura no metrô de volta pra casa”. Tem horas que sequer dá tempo pra parar pra pensar porque a gente tá querendo – ou comprando – aquilo. Tá bonito, tá barato, tá diferente e algum dia “vai que” eu uso…
Enfim, é fácil demais continuar vivendo no automático enquanto a gente não enxerga os rostos de quem atua como figurante. E isso vale pra tudo na vida. É uma bela desculpa seguir sendo cúmplice de crimes, violências e desumanidades sob a justificativa de que a gente “não tem como saber de tudo, né”. Pois eu te conto que a gente tem como alternativa ser mais lúcido, mais coerente, mais sensível e mais humano.
A China me ensinou isso. Me ensinou que nessa luta pela sobrevivência, a gente pode ficar um pouco cego. Cego pra enxergar os nossos porquês e ainda mais cego pra enxergar o outro. É cada um por si e se existir alguém por todos, que ele resista à fila do metrô.
Nessa maratona de acumular e descartar, ao invés de poupar e reutilizar a gente se perde nas prioridades e esquece de valorizar a vida em suas sutilezas diárias. É tanta coisa dentro da gente, da nossa casa e da nossa cabeça, que mais parece aquelas lojinhas de R$1,99.
Por isso, depois de tantos dias convivendo ao extremo com essa febre do consumo, eu concluo com ainda mais firmeza sobre a importância de valorizarmos os negócios sociais, marcas verdadeiramente conscientes e o comércio justo. No mundo em que vivemos, é inevitável fugir do consumo. Pois então, que o consumo seja a nossa contribuição para uma sociedade e uma economia mais justas e humanas.
Enfim, a China me apresentou um mundo novo. Encantador e ao mesmo tempo realista. Me apresentou o rostos de algumas das pessoas que trabalham duro, sem muitas perspectivas e muito menos sem imaginar que vamos comprar aquela bugiganga e depois esquecer em uma gaveta qualquer. Mas me ensinou também que pra tudo tem solução e que se for pra guardar alguma coisa na gaveta, que seja a preguiça de se tornar um agente de transformação por um mundo melhor.
Gabi.
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