Moçambique foi uma experiência tão intensa que faremos dois relatos em posts separados para contar sobre as tantas inspirações que tivemos!
Essa imersão de aprendizado aconteceu graças a uma amiga, Carlota Vilalva, que mora em Moçambique há um ano. Ela e três amigas criaram a Mozup, uma plataforma que coloca em contato organizações sociais que precisam de voluntários e pessoas que querem voluntariar mas não sabem como. Contaremos mais no próximo post. Muito obrigado, Carlota!
Moçambique lembra a história de Angola, por ter sido colonizada por portugueses e se tornado independente no mesmo ano, 1975, seguido de uma triste guerra civil. Essa ao menos terminou antes, em 1992, com alguns rastros de conflitos mantidos até 2014 em algumas regiões centrais do país, entre as duas principais guerrilhas-partidos: FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). O acordo oficial de paz entre elas foi assinado neste mês de setembro de 2014, dois meses antes das eleições que acontecem desde 1994 e ainda não são exatamente confiáveis, segundo a opinião pública. Em razão desse fator duvidoso e da preferência de todos que ouvimos pelas ruas, a FRELIMO deve permanecer no poder.
Esse suposto gosto popular pelo partido dominante me chamou muito a atenção, já que todos sabem que a corrupção ainda é latente e os sistemas de educação e saúde não funcionam. Pior ainda é que na maioria das vezes que perguntei se as coisas têm melhorado em Moçambique a resposta foi negativa… Muito provavelmente o que falta é uma boa educação política e melhores candidatos.
Um fato inusitado é que logo após a declaração da independência, foi criada uma lei ordenando os portugueses a deixarem o país em 24 horas com 20 quilos de bagagem. Já imaginou uma notícia dessa? Chocante, vingativo e inconsequente. Assim eu descreveria tal ato. Seu desdobramento desastroso se nota por ser um dos países mais pobres do mundo, grande parte em razão dessa desordem gerada pela decisão precipitada de novos homens com o poder em suas mãos.
Depois dessas primeiras impressões, pudemos conhecer pessoas do bem e dispostas a se dedicar para melhorar a vida de quem não tem nada a ver com tudo isso: as crianças! A organização Livro Aberto foi fundada em 2007 por pessoas especializadas nas áreas da linguagem, educação e alfabetização. Tem o objetivo de complementar o trabalho fundamental de educar, o que mesmo sendo de responsabilidade básica das escolas locais, o sistema de ensino não é capaz. Conversamos com uma das fundadoras, Mindy Brown, que sendo professora de uma escola em Maputo se espantava ao ver meninas sendo aprovadas para o ano seguinte sem nem mesmo estarem alfabetizadas. Claro que seria injusto colocar a culpa apenas nos professores, uma vez que o problema é mais complexo por não ter a devida atenção do governo e da sociedade civil. O triste resultado são crianças que sequer sabem ler e têm seu aprendizado seriamente comprometido.
Com um olhar generoso para essa lacuna social, Mindy criou a Livro Aberto para contribuir para o desenvolvimento de crianças de áreas menos favorecidas como o bairro da Mafalala (sobre o qual contarei mais adiante). Além de ensinarem, de fato, a ler e escrever, eles buscam criar o hábito da leitura como um momento de prazer. Participando de uma manhã com os voluntários pude sentir algo que nunca tinha vivenciado de perto, ver como a alfabetização pode ser alegre e feita brincando. Naquele momento fiquei pensando como uma atividade divertida por algumas horas na semana pode influenciar profundamente a vida delas, por torna-las capazes de ler e ter acesso ao conhecimento interminável, o que é o começo para garantir uma vida repleta de oportunidades.
Empolgados com tantas inspirações ao nosso redor, tivemos a oportunidade de conhecer ainda mais crianças na Associação Projeto Cidadão (APC) em Boane, que fica a trinta minutos da cidade de Maputo. Além da missão de educar a primeira infância, a Família Cavalheiro criou a APC para ajudar o desenvolvimento econômico e social da comunidade em diversas esferas como cultura, arte, profissionalização e saúde. O mais incrível é que tudo isso está progredindo até hoje por meio da rede de amigos que construíram, o que lhes permitiu conseguir locais para aulas, materiais e pessoas voluntárias interessadas em liderar as diversas ações que fazem.
Quando os conhecemos chegamos no horário das aulas e apesar de ser uma escola que precisa de melhorias, a garotada estava estudando e via-se muita alegria. No video poderão ver as brincadeiras que a titia Gabi realizou… Nos outros países o inglês não nos deixava interagir tão próximos aos jovens, mas ali a língua portuguesa nos aproximava muito mais delas… Ver crianças sendo educadas mais uma vez, onde essa responsabilidade humana essencial não é exatamente cumprida, nos emocionou. Principalmente por presenciar como a generosidade pode melhorar substancialmente a vida delas.
Sem terem culpa nenhuma pelo passado, essas pequenas pessoas são as que mais sofrem as consequências no futuro por não terem acesso a serviços básicos que a sociedade deveria esmerilhar para conseguir… Mas ao invés de fazer disso um objetivo coletivo, os que têm o poder de decisão hoje, preferiram o comodismo de investir dinheiro, tempo e intelecto na criação de tecnologias para desenvolver xampus mais avançados para deixar os cabelos mais bonitos e brilhantes… Apenas um exemplo da inversão de valores que vivemos…
Bom, no outro post a Gabi vai falar de outra organização e pessoas muito inspiradoras na luta pela educação do país, a Muodjo.
Voltando a falar do momento de Moçambique, sua economia por muito tempo dependeu de doações, porque além da exploração sofrida em sua colonização, o país não tinha tantas riquezas naturais até a descoberta recente de gás natural. Essa novidade deu mais esperança à prosperidade, pois isso realmente atrai investidores externos, ainda que com a intenção de levar uma parte, óbvio…
Independentemente disso, hoje o potencial mais incrível é o turismo e tivemos o prazer de conhecer um pouco na praia de Tofo. Em sua geografia alongada de norte a sul, o país tem uma grande extensão costeira, com arquipélagos, uma natureza exuberante e muita vida marinha. Além dos parques nacionais onde os safaris acontecem. O desafio ainda está na capacidade de o governo conseguir enxergar isso realmente como um estímulo para a economia com a entrada de recursos e o mais importante, como geração de renda incremental para a população que vive em torno de cada novo ponto turístico. Esse assunto tem sido discutido. Primeiro porque ignorantemente na contramão dessa oportunidade, o preço dos vistos de entrada no país mais que dobraram agora em junho. Segundo porque os conflitos violentos que ainda aconteciam na região central até meados do ano disseminaram uma preocupação muito negativa na indústria do turismo mundial.
Visando essa oportunidade com um olhar muito mais consciente e pensando no coletivo nasceu a Associação IVERCA em Mafalala, um bairro bastante peculiar de Maputo. Essa área foi criada no início do século passado pelos portugueses para regionalizar as moradias dos trabalhadores do porto da cidade, que passou a se desenvolver juntamente com a descoberta do ouro no país vizinho, África do Sul, gerando um grande migração no continente. Não foi uma segregação tão intensa como no Apartheid mas seu conceito similar curiosamente também deu origem a personagens importantes na história de Moçambique, como ex-presidentes e escritores. Inclusive o estilo musical da Marrabenta, uma identidade cultural do país, nasceu ali.
Em razão dessa riqueza cultural enraizada, Ivan Laranjeira, então um estudante de turismo, percebeu que naquelas ruas onde, de fora, existia um preconceito de violência e pobreza, existia um grande potencial de turismo inclusivo. Isso significa muito mais que utilizar os traços históricos tão fortes pelo lucro de um negócio pessoal, mas sim para desenvolver a comunidade de Mafalala, gerando renda para seus moradores também.
A IVERCA começou em 2009, quando Ivan e seus amigos, Erica Manjate e Carlos, resolveram começar “inovando a imagem” de Mafalala através da realização de três festivais de música em 2010. O que no começo parecia uma ideia de jovens loucos, acabou se tornando um festival anual elogiado e frequentado por Moçambicanos de diferentes regiões, com atrações de diversos gêneros musicais. À medida que o negócio social foi crescendo, a IVERCA desenvolveu a região não somente através da música, mas também do turismo cultural, artesanato e gastronomia.
Sempre com a missão clara de evoluir em conjunto com a comunidade, tendo inclusive oferecido formação de guia de turismo para jovens moradores do bairro.
Pudemos fazer o já famoso Tour de Mafalala e assistir a uma apresentação do grupo de dança Tufo da Mafalala, formado por senhoras de etnia Mácua com uma alegria e charme impressionantes. Até a Gabi foi convidada para participar do show.
Se não bastasse, eles viabilizam intervenções que beneficiam as escolas e o sistema de saneamento da comunidade. O ensino público em Mafalala não é uma tarefa fácil, umas das escolas que visitamos tem mais de mil estudantes, funciona em três turnos com sessenta alunos por turma.
Uma prova ainda mais contundente da responsabilidade consciente desse empreendedorismo social, notamos ao conversar com o Ivan. Muito além de crescer o negócio, eles têm o objetivo de divulgar o caso que criaram para que muitas outras regiões, com oportunidades similares, possam replicar o que a IVERCA criou para impactar positivamente a sua comunidade. E ainda mais importante é que todos os Moçambicanos lembrem que estimular esse turismo cultural é de responsabilidade de todos, já que juntos eles podem plantar ainda mais sementes como essa para melhorar o país coletivamente!
Muito obrigado a todos que contribuíram para tantos aprendizados e que essas organizações do bem sejam cada vez maiores.
Felipe.
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