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Experiência #8 - Harare e Chiredzi, Zimbábue


Enfim, Zimbábue!!!


Sempre tive vontade de conhecer esse país. Nenhum motivo específico, mas acho o nome engraçado e me parecia ser o lugar mais improvável de se visitar. E como essa viagem se trata de quebrar paradigmas, cá estamos.


Chegamos a Harare, capital do país, depois de mais uma daquelas viagens infinitas que inclui ônibus, lotação, caminhadas e dezenas de horas passando calor e comendo bolacha (Um beijo grande pra quem acha que estamos seguindo um guia de viagem de luxo).


A cidade encanta logo de cara. Primeiro porque tem como protagonistas centenas de jacarandás, que emolduram quase todas as ruas com flores lilás e pétalas caídas pelo chão. Segundo porque as pessoas são demais! Eu tenho problema com sorrisos, né?! Além de sorrir pra tudo e todos – sim, meio boba mesmo – eu sou da opinião que o sorriso é um conector universal. Você sorri, a pessoa sorri e cria-se um campo de energia boa que desarma qualquer baixo astral.


No Zimbábue tem sido assim. Eu até arrisco dizer que 99% da população, que chega a mais de treze milhões de pessoas, é sorridente. Mesmo com um histórico de guerras civis e graves ofensas aos direitos humanos.


E pra falar a verdade, problema é o que não falta por aqui. Um dos mais impressionantes é a deficiência no fornecimento de energia elétrica. O país não consegue produzir energia suficiente para toda a população e por conta disso as cidades programaram um sistema de racionamento diário – e aparentemente deve permanecer assim – em que a energia é cortada em diferentes períodos do dia. Isso se aplica inclusive na capital. Vivenciei intensamente essa questão durante meus banhos de canequinha no escuro .


Mas deixando os problemas de lado, saímos em busca da solução. Como sou brasileira e não desisto nunca, depois de alguns emails sem resposta, resolvemos visitar pessoalmente o escritório internacional da CARE, uma das organizações sociais que mais admiro. Colocamos nossas melhores roupas – camiseta e calça que vira bermuda – e nos apresentamos na recepção com o coração transbordando de alegria. E chegando assim, não tinha como o resultado ser diferente! Fomos recebidos pela gentileza em pessoa: Cathrine Bwerinofa, assistente de projetos da CARE Zimbábue.


A intenção da nossa visita era obter indicações de projetos e comunidades rurais que pudéssemos visitar. Não só conseguimos isso, como também ganhamos de Cathrine uma aula de história e desenvolvimento social. Claro que não demorou para percebermos que ela seria o anjo da vez. O dom da generosidade é inconfundível.


Assim como eu, Cathrine é apaixonada pelas questões que envolvem gênero e pelo que ela nos contou, ainda existe um longo caminho até transformar alguns conceitos tidos como certos pela sociedade Zimbabuense.


E para que pudéssemos conhecer de perto esses contrastes, ela nos apresentou a Joseph Mutsvaidzwa, um dos fundadores da Save Save Trust, uma organização em fase de constituição, que tem como objetivo integrar as comunidades e o meio ambiente, com destaque para a função social da mulher, além da preservação do Rio Save e seu entorno.


Viajamos com Joseph para o interior do país até chegar à região sul, nas cidades de Checheche e Chiredzi onde pudemos visitar algumas vilas e conhecer projetos de agricultura e reflorestamento, que oferecem à comunidade a possibilidade de se reconectarem com o meio ambiente, sentindo-se corresponsáveis pela sua preservação. Todas as famílias que visitamos vivem sem eletricidade e água encanada. Dedicam-se ao cultivo de frutas e vegetais, além da fabricação de tijolos. A venda desses produtos é a única fonte de renda dessas famílias, o que reforça a crença de que as crianças devem ajudar com sua força de trabalho, valendo a máxima de “quanto mais mão de obra melhor”, mesmo se for um pequenino de cinco anos.


Dentre as várias aventuras que vivemos esses dias, como atravessar o rio a pé na parte onde não havia crocodilos (eu tava bem tranquilinha nessa hora), a mais especial foi visitar uma autêntica vila rural, tão afastada, mas tão afastada, que a nossa visita se tornou um evento social e cada vez chegavam mais pessoas para participar da festa.


Foi no meio dessa festa que eu conheci uma princesa muito mais interessante do que os contos de fadas nos contam: Tariro Chekenyere.


Uma garotinha de 10 anos que, sorrindo com os olhos, me apresentou uma realidade que eu sabia existir, mas relutava em acreditar. Ela vive com a mãe e quatro irmãos e como já percebemos por aqui, a figura do pai é pouco relevante, sendo a mulher a principal responsável pelo sustento da família e criação dos filhos. Isso ocorre porque a poligamia e a infidelidade são práticas exercidas larga e exclusivamente pelos homens, recebendo, inclusive, proteção legal pra tanto. O mesmo não é permitido à mulher, claro, mas por esse motivo é natural que a presença do homem seja quase que desconsiderada pela família – ou famílias.


Tariro caminha todos os dias dez quilômetros para chegar à escola e demora em média duas horas para ir e duas horas para voltar. Ao chegar em casa, ela parte pra outra missão: cortar lenha, que é uma das formas alternativas de se obter energia e uma oportunidade de renda para as famílias que vivem na zona rural. Infelizmente, o problema ai não é só a mão de obra infantil, mas também o desmatamento inconsciente das árvores da região, o que compromete significativamente a saúde do meio ambiente.


Além desses desafios diários, ela tem um ainda maior. Tentar se manter no controle da sua própria história. Isso pode parecer precoce demais para uma menina de 10 anos, mas não é. No Zimbábue, o casamento infantil ainda é bastante praticado.


Em algumas vilas, a partir dos 12 anos, as garotas interrompem a frequência à escola para participar de outro tipo de aula, em que aprendem sobre técnicas corporais para satisfazerem os maridos sexualmente e como se comportarem adequadamente como esposas. Essas aulas costumam durar de maio a julho e é comum que, depois disso, as meninas não retornem à escola, pois passam a ser consideradas adultas e prontas para o casamento, na maioria das vezes com homens muito mais velhos.


Nessas regiões, o casamento é um negócio lucrativo para as famílias, que recebem um dote pago pelo noivo (lembrando que “lucrativo” nesse caso varia de acordo com o nível social. Na zona rural, por exemplo, a família da noiva costuma aceitar vacas como forma de pagamento). Cathrine nos relatou que muitas das famílias investem o dinheiro recebido pelo casamento de uma filha na educação dos filhos homens. O documentário Girl Rising conta a história de uma jovem menina cujo dote pago pelo casamento foi usado para comprar um carro para o irmão mais velho.


Essas práticas são tão enraizadas na cultura do país, que somente este ano, 2014, entrou em vigor uma nova constituição que reconhece a igualdade de gêneros como um direito fundamental.

Mas Tariro nem se abala com isso. Quando perguntei a ela o que pensava sobre o casamento, a resposta foi certeira: “Eu não pretendo me casar.” E o que ele pretende fazer, então? Tariro quer se tornar professora de inglês e trabalhar para ser a dona da sua própria vida. E ela me respondeu exatamente nessas palavras…”dona da minha própria vida”.


E de lembrar que aos 10 anos eu colecionava papel de carta e organizava chás da tarde para as minhas bonecas. Meu maior dilema era como convencer meus pais a me deixarem ir ao cinema sozinha com as amigas. Falhei, claro.


Mas Tariro me fez refletir muito além da questão do gênero. Ela me fez refletir sobre a nossa capacidade de sermos as protagonistas da nossa própria história. E mais, da nossa habilidade para usarmos a nossa história em benefício dos outros.


Isso porque, para ser “dona da sua própria vida” ela precisa lutar contra costumes, crenças e a falta de oportunidades. Uma verdadeira batalha contra o senso comum e tudo aquilo que, supostamente, é o caminho certo a se seguir.


O Fe falou um pouco sobre isso na última Reflexão, mas essa “ausência de questionamento” tem se feito tão presente durante as nossas experiências, que não tem como não retomar esse ponto.


Será que temos nos questionado o suficiente? Será que sabemos justificar – pra nós mesmos – as nossas escolhas? E mais, as nossas escolhas nos tornam mais do mesmo ou mais parte relevante de um todo?


Sempre há tempo para se reconhecer, revisitar e reconectar. Mudar de opinião, mudar de emprego, mudar de vida. Ou simplesmente se dar conta de que aquele velho conselho do Gandhi “seja a mudança que você quer para o mundo” é a mais pura verdade.

Enfim, a Tariro segue em sua luta. E você, luta pelo o que ?

Gabi.

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