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Reflexão #11 - Sobre a preguiça de viver na Terra



Esse é um desabafo de um ser humano que habita a Terra.


Antes de mais nada, acho prudente definir “ser humano” para os fins deste relato. Ser humano é mais uma das incontáveis espécies de seres vivos, mas é considerada a única capaz de exercer o raciocínio. Não somos – ou não deveríamos ser – movidos pelo puro instinto que rege o restante do reino animal. O ser humano aparentemente foi abençoado com o poder da consciência, do questionamento e da livre escolha.


Existem boatos de que há centenas de milhares de anos atrás, o ser humano reconhecia a convivência coletiva e solidária como um dom precioso, digno de proteção e respeito. Os membros mais jovens dos grupos sociais, que costumavam dispor de mais saúde e vantagens físicas, tomavam para si a responsabilidade de sair à caça e abastecer todo o vilarejo. Enquanto isso, os outros membros do vilarejo se dividiam nas demais tarefas. Esse mecanismo poupava os mais velhos e as crianças de se exporem a condições extremas.


Funcionou assim por um bom tempo e todos contribuíam de alguma forma. Os mais velhos compartilhavam a sabedoria de vida, as crianças cresciam aprendendo e ensinando com leveza e ingenuidade e os jovens assumiam as obrigações sociais para suprir a grande família com alimentos e segurança.


Acontece que em algum momento desse processo ocorreu uma falha… Um dos jovens seres humanos não foi capaz de compreender o que seria exatamente ser consciente – em todos os sentidos – e resolveu mudar as regras. Ele se perguntou o porquê de ter que sair à caça, enquanto os demais só esperavam pela comida e achou prudente sugerir aos companheiros de trabalho que parassem de distribuir entre todos os alimentos que eram caçados/colhidos.


Sem se questionar sobre o que isso poderia causar, a sugestão foi aceita e a sociedade que antes vivia em harmonia e prosperidade, se viu obrigada a lutar pela sobrevivência. Pessoas começaram a morrer de fome, enquanto os jovens inovadores acumulavam montanhas de comida em suas cabanas, que apodreciam antes mesmo que pudessem ser consumidas. Ninguém parecia se importar muito com esses novos “problemas”, afinal, a partir dali era cada um lutando pelos seus próprios interesses.


Daquele momento em diante o ser humano sofreu uma forte mutação e esqueceu-se da sua essência social e moral. O que sobrou foi o “eu” e tudo aquilo que se concentra no nosso umbigo. Novas regras e conceitos foram criados para regular essa nova realidade e aparentemente impedir que sejamos capazes de lutar por algo que vá além da nossa própria sobrevivência.


Aqueles jovens entenderam tudo errado e criaram um precedente que passou a ser replicado pelo mundo e hoje é a premissa de atuação de grande parte das empresas e instituições que controlam a nossa vida por meio de pessoas que não têm consciência de que podem fazer diferente.


Mas eu me considero um ser humano à antiga, daqueles que prefere compartilhar a caça do que guardá-la no congelador, embora isso tenha se mostrado um desafio diário e nem sempre prazeroso.


Isso porque o mundo agora parece ter sido adaptado aos sistemas, aos processos, às atendentes eletrônicas e aos SMSs informativos. Não há nada que o ser humano possa fazer, se o “sistema não autorizar”. Viramos reféns da ganância daqueles jovens que ao deixarem de se importar com a sociedade em que viviam, instigaram a criação de mecanismos que priorizam o interesse individual de poucos em detrimento da vida, das emoções e da dignidade de muitos.


Se pararmos bem pra pensar, os nossos dias são marcados por combates entre nós e o bendito “sistema”… O mesmo que debitou duas vezes uma despesa no seu cartão, que não permite o cancelamento da sua linha telefônica ou do seu plano de tv a cabo e o mesmo sistema que nega internações e cirurgias médicas urgentes enquanto seu seguro de saúde não autoriza.


O tal sistema é tão abstrato que nos deixa sem saber pra onde ir ou a quem recorrer. Gente, chama o chefe do sistema que eu quero resolver com ele!! Nessas situações a resposta costuma ser “Sra., lamento mas essa informação não consta no sistema”. Ai você desiste, fica com vontade de chorar e é imediatamente tomado pela preguiça de viver no planeta Terra.

Esse desabafo é exatamente sobre isso. Sobre a preguiça que eu, ser humano, sinto em ser habitante da Terra.


Tem gente que acha que viajar como estamos fazendo é o resumo da vida perfeita, mas a verdade é que por trás de todo o nosso otimismo e empenho, presentes em quase 90% do tempo, às vezes somos rendidos ao desânimo e à tristeza de questionar se o mundo tem mesmo solução. Escrevo isso às 4 da manhã do aeroporto de Daca, em Bangladesh, minha segunda noite consecutiva dormida em um aeroporto (ontem foi em Delhi) depois de ter nossa entrada negada pela imigração, pois os seres humanos com quem cruzamos pelo caminho se recusam a nos tratar como tais e preferem ignorar nossa presença e a nossa justificativa para querer entrar no país deles. Apresentamos gentilmente todos os documentos solicitados, cartas convite, confirmação da nossa inscrição em um evento de negócios sociais, passagem de ida, hotel e ainda lembramos a eles que alguns brasileiros conhecidos há pouco tempo obtiveram o visto na chegada ao país…



O curioso é que mesmo com o visto negado fomos instruídos a solicitar permissão a alguém do governo, que deveria ligar para a imigração autorizando nossa entrada. Ou seja, o propósito do Think Twice Brasil, que sequer teve a chance de ser apresentado a eles, não é tão nobre quanto conhecer alguém do alto escalão do governo bengalês. Afinal, é muito mais fácil seguir o protocolo mecânico do que encarar situações com mais humanidade.


Quando viajamos estamos totalmente expostos a situações inesperadas, que são potencializadas por estarmos longe do nosso país, dos nossos costumes e da nossa língua. Quando essas surpresas não são exatamente positivas, somos só nós dois na jogada e salvo os momentos iluminados e abençoados – que já foram muitos – eu e minha dupla temos que consultar nossa bola de cristal e encontrar sozinhos uma solução, já que quase sempre àqueles a quem recorremos pedindo ajuda costumam estar ocupados demais seguindo ordens inflexíveis dos sistemas ou checando o status do facebook.


Quem nunca perdeu horas tentando resolver um problema com o celular, com o cartão de crédito ou com o plano de saúde? E quem nunca ouviu a desculpa de que o sistema caiu, o sistema não autoriza ou não consta no sistema? Gente morrendo na fila do hospital, doando dinheiro indevidamente a empresas que agem de má fé e sofrendo humilhações em órgãos públicos. Aposto que todo mundo tem pelo menos uma história nessa linha.


Há quem fique totalmente descontrolado. Eu fico triste. Arrasada, na verdade. Choro e sou consolada pelo Fe, ao mesmo tempo que soluço “Porque o mundo é assim? Eu não quero que meus filhos sejam reféns desse sistema. Quero viver numa floresta encantada comendo chocolate amargo, sem celulite e com variedade de cremes para os cabelos.” A última frase é brincadeira (exceto quanto ao “sem celulite”).


Não quero mesmo. Não quero que meus filhos, nem os de ninguém, cresçam sendo tratados com desprezo, descaso e intolerância por causa de regras incoerentes, ignorantes e inflexíveis, que servem de base para justificarmos a nossa omissão e a nossa negligência no trato com o outro.


Somos seres humanos, gente!!!!! Precisamos resgatar isso e aplicar essa sensação maravilhosa de questionar, interpretar e aplicar inteligentemente as regras que nós mesmos criamos. O sistema somos nós, poxa!!! Quem trabalha em empresas que prestam serviços ou vendem produtos, pode começar a refletir sobre isso imediatamente. Como a sua empresa encara o ser humano? Como ela reage diante de uma situação delicada? Qual o valor dado ao pedido, à opinião ou à mera existência das pessoas com quem se mantém uma relação? E você, como parte dessa empresa, se sente responsável por isso também?


Esse exercício na verdade é pra todos. Como você reage quando alguém precisa de você – mesmo que seja pra informar um endereço? O que você faz quando encontra alguém em uma situação de emergência ou necessidade? Você dá atenção ao pedido de alguém que não vai te oferecer nenhum benefício?


Essas reflexões são boas pra avaliar se você também é um ser humano à antiga ou se foi rendido aos padrões de comportamento que tratam seres humanos como máquinas desprovidas de essência moral e emocional.


A desculpa de que você precisa do seu emprego e deve seguir as normas não cola. Você continua exercitando o raciocínio – espero eu – e isso é o suficiente para fazer bem feita a SUA parte, que vai muito além do que repetir protocolos e irrazoabilidades. Enquanto continuarmos reféns das regras que só nos prejudicam, o mundo não vai melhorar. O 1% de criaturas humanas que detém os 48% da riqueza mundial (fonte: OXFAM) estão se divertindo, tomando um espumante gelado e pegando um bronze em algum lugar da Polinésia Francesa, enquanto você tenta receber o reembolso da empresa que debitou a mais no seu cartão de crédito e “esqueceu” de devolver.


Se todos nós pudermos reconhecer que precisamos invariavelmente um dos outros, talvez fique mais claro o valor especial que é servir ao próximo. E servir no sentido de estar disponível para simpatizar com a causa e tratar o interlocutor com dignidade, empatia e respeito.


Você que trabalha nas operadoras de telefonia, por favor, não me diga para ligar novamente e repetir pela 15a. vez o meu problema. Você que administra cartões de crédito, não me faça ter que buscar uma lan house no meio da zona rural da Zâmbia para reclamar uma despesa indevida. Você que trabalha em uma companhia aérea, não cobre duas vezes o mesmo voo achando que eu não vou conferir minha fatura. E você que simplesmente trabalha com pessoas, pare de culpar o sistema e seja a mudança que você espera ver no mundo.


Reaja, questione, ouça, ajude, sirva e compreenda que independentemente das normas e regras que temos que seguir, pessoas continuam sendo movidas a emoções – positivas ou negativas – e nós não devemos mais sobrepor o sistema a isso.


Façamos a nossa parte para resgatar a sensação de que podemos contar uns com os outros e que os problemas sempre são mais facilmente solucionados quando há energia de pessoas que se portam verdadeiramente como seres humanos conscientes de suas responsabilidades como cidadãos e não apenas como bonequinhos de massa que cumprem toda e qualquer ordem, independentemente do que ela pode ocasionar.


Não quero ver mais gente sendo mal tratado no Fórum (eu que o diga nos meus tempos de estagiária haha) ou em qualquer órgão público. Ninguém perdendo horas de vida batalhando para cancelar a assinatura de alguma coisa ou perdendo a vida na fila de espera de um hospital. Não quero gente se esquivando de praticar a compaixão pelo outro porque “não é pago pra isso”, nem sem paciência pra ser flexível, consciente e íntegro. Não quero mais ver gente resolvendo o problema só quando tiver “ordens lá de cima”. Por fim, não quero estar rendida ao desencontro de informações, à má vontade para encontrar soluções e a indiferença ao sofrimento alheio.


Suspeito que o motivo da minha preguiça de viver na Terra é porque aqui falta muita gente consciente dos seus direitos, das suas possibilidades e do seu valor. As regras absurdas, os protocolos e o abuso de poder foram se desenvolvendo em cima de pessoas que não fazem ideia que podem se levantar contra isso. Gente empoderada e ciente de sua condição como ser humano e cidadão não aceita tudo que lhe é imposto e tem a tendência de questionar a falta de bom senso, respeito, disponibilidade e razoabilidade de quem infelizmente tem a visão embaçada pelo descaso, individualismo e desconhecimento.


Quero ter o dom de poder ajudar a preparar um mundo mais coerente pros meus filhos. Um mundo em que eles possam ser tratados como seres espirituais, que colherão exatamente aquilo que plantarem. E eu vou dar a minha vida para que eles aprendam a plantar só o bem.



Que eles possam ter a tranquilidade para deitarem ao final do dia com a sensação de que não deixaram nada, nem ninguém, pra trás.


Que eles possam ouvir a história de um povo não muito antigo que era refém de um negócio chamado sistema e se machucavam uns aos outros para tentar aplicar regras desconexas, imprecisas e intolerantes criadas por eles mesmos.


Enquanto isso não acontece, eu espreguiço, engulo meu choro e pratico minha paciência virando mais uma noite no saguão de um aeroporto. E antes de perder a compostura e a fé na humanidade, eu lembro de ser grata por poder estar aonde estou e independentemente da circunstancia, conseguir tirar boas lições disso.


Que boas lições são essas, eu ainda não sei. Mas certamente uma delas é acreditar que nós, os seres humanos, ainda estamos vivos e espalhados por ai. Nadando contra a maré e desejando que a correnteza mude em breve a nosso favor e traga com ela a humanidade, a sensibilidade e a compaixão que a onda levou.


Até lá, resta desejar perseverança pra quem está preguiçoso como eu e consciência pra quem não tem força pra nadar sozinho.


Gabi.

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