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Reflexão #2 - Educação Social x Senso Comum


Depois de dois meses de viagem muitos aprendizados iniciais passam pela cabeça, mas aquele pensamento criativo de esperança ainda tenta minimizar as proporções não tão boas que eles podem significar. Tenho a auto-prioridade clara de dar mais espaço para minha intuição antes da razão. Mas depois de estar intensamente com as pessoas de sete países africanos, alguns raciocínios enraizados nessas culturas me impactaram bastante. Essa chacoalhada mental pode ser por um simples fator que eu já acreditava antes de viajar: os seres humanos são altamente capazes de fazer e seguir o que certo grupo de pessoas toma como verdade, apenas por um comodismo natural, sem ao menos parar por um minuto de silêncio para refletir “por quê?”. Em outras palavras, o senso comum…


Uma imagem negativa que nós, não africanos, temos do continente é de crianças negras sofrendo. Dos inúmeros preconceitos criados pelos poderosos meios de comunicação, (nem sempre condizentes com a realidade) esse parece ser infelizmente real e talvez o efeito mais desastroso das desumanidades modernas.


Relato algumas situações que vivemos para que possa sentir essa sensação que temos praticamente todos os dias. Em seguida contarei o que pode ser a causa.


1. É habitual ver crianças, desde recém nascidas, perambulando pelas ruas com suas mães enquanto elas se locomovem a algum lugar ou trabalham informalmente. Isso é normal porque as mulheres tomam frente para sustentar e criar seus filhos com muita luta – A Gabi ainda entrará mais a fundo no tema da forte mulher africana. – Ou seja, esses bebês nem têm a possibilidade de ficar em casa no seu primeiro ano de vida, receber a devida atenção, começar a aprender e brincar num local limpo e seguro. Para quem teve acesso a tudo, esse detalhe até então pareceria minúsculo, mas sinto todos os dias a imensidão deste contraste com os olhos de quem teve esse privilégio. Gratidão!


2. É muito comum ver crianças vendendo de tudo nas ruas, de doces e bebidas a eletrônicos. Esses o fazem por conta própria a partir dos cinco anos de idade e na grande maioria das vezes são meninos. O maior desafio desses momentos em que sou um potencial cliente é a turbulência de conflitos mentais que temos ao querer ajudar ali, naquele instante. Primeiro por não querer estimular o trabalho infantil; Segundo por não saber se aquele dinheiro vai para a comida no prato do menino ou para a cerveja do pai que o obriga a trabalhar; Terceiro pelo receio de ao tirar um dólar do bolso formar um tumulto de pessoas querendo mais.


3. É menos comum (que bom) ver crianças pedindo esmola, mas também acontece diariamente. O curioso é que ai a turbulência psicológica entra no nível seguinte de complexidade, pois brasileiros costumam ter uma percepção aguçada contra a malandragem. Há os que visivelmente “se acham mais sábios” e querem apenas tirar um dinheiro extra por sermos brancos, turistas e talvez com cara de bobo… São sempre meninos também. O conflito ai é querer acreditar que ele está fazendo aquilo só para ajudar a família a sobreviver. Há outros que são criativos e contam toda uma história para impactar e ai o conflito é titubear se pode ser verdade. E há os casos, talvez ainda mais graves, de meninas e meninos que simplesmente ao notarem você correm e dizem-pedem “money”, associando nossa cor à riqueza. É de arrepiar ver que existe claramente um trauma do racismo e colonização transmitido pelos pais e pela sociedade.


Bom, ao longo de infinitas indagações sobre esse tema, conversamos com muita gente para entender mais sobre as possíveis causas desse papel da criança africana. Falamos com pessoas de diferentes cores de pele, posições sociais, riquezas intelectuais aparentes e abundância financeira. Tudo na busca por um aprendizado imparcial.


Nessas interações compreendemos uma essência cultural muito característica dos países do sul do continente africano: o senso comum de que quanto mais filhos você tiver melhor. O que desencadeia muitas vezes o “objetivo social” de casar cedo e eleva seriamente riscos à saúde, principalmente AIDS, pela falta de conscientização no uso de preservativos.


Segundo aprendemos até agora, o principal fator que justifica tal anseio, é pensar que mais pessoas podem trabalhar e contribuir para o sustento da família no futuro. O detalhe é que estamos falando de crianças que começam aos cinco anos… Ou seja, é uma lógica maluca de achar que é normal uma criança não ter infância e esquecer que ele precisa aprender a viver, para quem sabe em idade adulta poder trabalhar com seu propósito e assim mais próximo da sua realização pessoal. Também é uma tamanha irresponsabilidade ao reiterarmos um princípio humano elementar de que pais devem cuidar dos filhos e assim sucessivamente, o ciclo da vida.


No caso das filhas ainda existe a recompensa financeira futura, pois o costume de pagar dotes para a família da noiva em casamentos adolescentes ainda existe de forma ampla, muito mais do que imaginávamos. – A Gabi também entrará mais em detalhe nesse tema em outro momento. –

No Brasil sabemos que existem grupos de pessoas com um conceito similar sobre ter filhos, pela mesma falta de educação social. O dolorido no nosso país é saber que mesmo em um contexto de severa desigualdade, muitas pessoas que tiveram acesso à educação tem a coragem de inventar críticas maldosas a esses grupos desfavorecidos. Já li comentários incultos julgando que pessoas têm muitos filhos para fraudar e viver de programas de governo, como o Bolsa Família. O primeiro atestado de ignorância desses indivíduos é que nem sabem como funciona esse programa, suas regras com limite de filhos beneficiários e suas exigências. A segunda prova de inaptidão intelectual é que nem sabem fazer uma conta simples, pois essa indicaria que a “estratégia” de ter filhos pelo benefício nem seria rentável para a investidora-mãe… Por gentileza, de volta à escola colega .


E por favor, esse comentário não se trata de política, apenas de raciocínio lógico e bem comum…


Naturalmente gerar um filho é o dom mais precioso que temos e o sentimento de amor mais verdadeiro! Não sou pai, mas sou filho! Todavia na sociedade moderna que criamos juntos para ter filhos você precisa de um planejamento responsável para poder criá-los com dignidade até se tornarem independentes. Cada um no seu ritmo claro, tenho amigos da minha idade que ainda não conseguiram…


O que revela a magnitude desse problema é pensar que estamos falando hoje de uma média de cinco filhos por mãe na África, segundo o índice de fertilidade publicado pela ONU. Isso é uma média do continente, ou seja, existem países cujo número chega a oito filhos por mãe. Pasme! No caso das famílias desfavorecidas, infelizmente a maioria, é simples fazer a conta que para uma renda ínfima por mês quanto mais bocas para alimentar mais comida é necessário comprar… Sem falar de moradia, escola, saúde e amor. Basta elucidarmos esse costume considerando a população africana feminina adulta fértil vezes cinco e chegamos a um resultado global inquietante.


O mais preocupante é que isso se tornou uma pressão social muito comum. Quando nos perguntam a nossa idade e quantos filhos temos, é um espanto ouvirem que ainda não temos aos trinta anos. Ao menos falamos com alguns jovens (viva as gerações X, Y, Z!) que são conscientes para questionar essa pressão descabida e se colocam contra esse costume.


Por ora, o aprendizado que podemos levar é que a educação pode mudar a partir de hoje o caminho da humanidade e por mais desafiador que seja não devemos desistir. A das crianças compromete aquele futuro próximo quando nós adultos não estaremos aqui, então um motivo a mais para pensarmos duas vezes e abrirmos os olhos para o nosso amanhã. Precisamos inovar as formas de conscientizar pessoas de todas as idades, sexos e crenças a se perguntarem se o que o senso comum “lhes diz” está em perfeita harmonia com o seu merecido livre arbítrio.

Ideias?

Felipe.

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