Depois de quase seis meses convivendo diariamente com pessoas nas ruas de mais de trinta cidades africanas meu autoconflito de querer ajudar, mas não querer instigar ao erro e não ser enganado continua em alta.
Em especial na Etiópia foi onde, tristemente, vimos o maior número de mendigos. De todas as idades e sexo em diferentes áreas. Tentamos entender por qual razão essas pessoas moram nas ruas, mas quando perguntávamos as respostas foram apenas óbvias: pobreza. Ainda esperamos conseguir entender melhor.
O dilema começa por não querer julgar. Sem saber absolutamente nada sobre a vida dessas pessoas seria injusto concluir se é certo ou errado estarem ali.
A discordância seguinte é matemática, por ter consciência de que a mesma quantia que eu poderia gastar para satisfazer a minha gula (não a fome) por uma bala, um queijo e um vinho, poderia significar as refeições de uma mãe e sua filha por alguns dias.
A dúvida é ter certeza que o meu Eu não será induzido ao erro por uma possível malandragem daquela pessoa que está ali e viu a possibilidade de sobreviver pedindo dinheiro na rua. Parece que fico analisando até demais, mas existem casos onde os meninos estão com roupa sem furos e dentes limpos e outros com roupa velha, suja e dentes pretos de cáries. Há uma clara diferença que aumenta a minha estranheza.
Depois da preocupação pela nossa segurança, ainda mais com a lady Gabi aqui :), vem a autodefesa para não passar por idiota, mas receio quão descabida ela pode ser… Se estou de frente a um ser humano que sobrevive com pouca dignidade, abrindo mão do seu orgulho para pedir esmola e piedade aos outros, seria um desconfiança pertinente? Talvez me equivoque em priorizar o meu orgulho, enquanto questiono a idoneidade daquela pessoa que desistiu do seu próprio. Tudo por alguns trocados…
Sempre volto a pensar no “certo ou errado” que é quase um instinto, mas ele ainda não ajudou a decidir meu ponto de vista nessa questão. Tentei adotar uma postura de não incentivar a esmola e não dar dinheiro, apenas comida quando a situação permitir, mais um abraço, um sorriso e uma energia positiva! Mas na Etiópia com meninas tão pequenininhas dando a mão para pedir qualquer coisa, tem sido difícil para o coração. A lógica tenta me dizer que se ninguém desse dinheiro, eles não estariam ali e encontrariam outra forma de viver. Pode até fazer sentido, mas que meio de vida seria? Ainda não me convenci.
Outro grande dilema tem sido nutrir essa mesma paciência quando somos abordados nas ruas por vendedores, guias, pais de santo e estudantes. É um conflito parecido com a esmola, porém como a conversa começa com um sorriso de “bem-vindo, de onde vocês são?”, o pensamento de cuidado com possível interesseiro soa na mente com outra cautela…
Acho totalmente incorreto julgar que todos são malandros e estão ali para tirar alguma vantagem. Com uma certa base estatística de vivência, confio dizer que em 90% das situações que fomos abordados na rua na “amizade” eles queriam oferecer alguma coisa em troca de dinheiro claro. Então calma, não era malandragem, eles só querem se destacar no trabalho deles e conquistar novos clientes. Justo, segundo os ensinamentos para ser vitorioso na sociedade moderna…
Quem nunca recebeu aquele telefonema inoportuno de uma pessoa querendo oferecer seguro, empréstimo, TV a cabo, catacumba? Pode ser uma opinião pessoal, mas acho falta de respeito ter que parar para ouvir uma empresa tentando te vender algo que você não está procurando. Imagine dez ligações dessas por dia… Ao mesmo tempo respiro fundo e esforço a minha educação por saber que do outro lado da linha a pessoa está fazendo um trabalho que pode ter sido a sua única oportunidade. Apontar culpados de tantas palhaçadas que acontecem hoje não é fácil. Viva a competição e o respeito que se afunde…
O desafio é realmente a paciência para tolerar e respeitar o que parece ter sido ensinado como conceito de sucesso para eles: vender cada vez mais custe o que custar. Na maioria das vezes eles conversam com respeito, mas claro que cientes de algum interesse já interagimos sabendo que têm um objetivo… Sempre numa boa, mas respondemos com aquele tom “obrigadooo, mas fuiii”. Uma dica aqui é não continuar andando como se estivesse fugindo. Pare, aproxime-se, olhe no olho, agradeça, manda um beijo e corre! Sempre funcionou comigo…
Para explicar o nível de complexidade mental que esses fatores atingiram na minha cabeça, pequenos atos de generosidade passaram a mexer muito comigo. Quando nos deparamos com uma pessoa proativamente gentil que deixa clara a sua intenção de ajudar e a isenção de qualquer retorno esperado, sentimos uma gratidão tão grande que surge uma necessidade de querer reconhecer essa bondade. É como dar um chocolate em troca de um exercício bem feito por aquele aluno na escola.
Mas ai penso que um ato de generosidade não deveria precisar de um reconhecimento financeiro ou material, bastaria um gentil obrigado e o sinal universal de alegria: um sorriso. É assim que o fazemos do nosso jeitinho brasileiro, celebrando, gritando, abraçando e pulando…
Em nossa visita à Angola, que contamos na Experiência #4, vivenciamos mais de um ato de generosidade que nos alegraram bastante, principalmente vindos de gente simples num país profundamente corrupto que esteve em guerra até 2002.
O ponto de reflexão nisso tudo pra mim, é que, infelizmente, hoje um ato de generosidade e bondade é tão raro que senti-lo gera emoções. Seria injusto generalizar essa conclusão apenas para o continente Africano, mas arrisco dizer que essa tendência ainda é global. Dá pra imaginar a diferença que seria na felicidade do dia-a-dia se essa generosidade estivesse na moda? Parece que perdemos a responsabilidade de se importar com os outros. Cá entre nós, a culpa é só nossa e agora é nosso dever parar com essa brincadeira e resolver mudar…
Nós por aqui ainda precisamos ter mais paciência, compaixão e ser tolerantes. Minha estimada sogra sempre diz um pensamento (o qual não sei a fonte nem as palavras precisamente) que diz que depois de um ato de bondade feito, você deve apenas absorver a energia positiva dele e abstrair qualquer dúvida sobre a boa índole do receptor e seus efeitos. Assim você fica exclusivamente com o BEM. Boa dica pra quando fico na dúvida, ai ajudo e pronto.
Minha conclusão preliminar talvez seja óbvia. Acho que precisamos apenas relembrar e prezar de verdade por alguns princípios que todos nós já aprendemos e conhecemos. Inclusive muitos grandinhos de hoje que se esqueceram de usá-los, tentam ensinar aos seus filhos. São valores humanos que independem de religião, crença e sonhos. O tempo e nosso dito desenvolvimento esconderam esses sentimentos de nós mesmos, mas temos consciência que eles ainda vivem conosco.
Agora basta querer não é? Amar, respeitar e ser generoso! Só isso.
Felipe.
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